07 Apr
07Apr


Um cidadão chega ao meu escritório com uma história e uma notificação de 5 folhas. A história: há dois anos e 4 meses, estacionou em Lisboa num lugar pago e, como não tinha moedas, utilizou a aplicação 'ePark' da EMEL e pagou o valor devido, não se dando conta de que se tinha enganado na introdução de um dos números da sua matrícula. Quando voltou, encontrou o automóvel bloqueado, foi autuado e chamou a EMEL, que compareceu depois de várias horas. O cidadão explicou o sucedido, mas foi inútil. Ninguém se deu ao trabalho de cumprir o dever elementar de confirmar o sucedido e o pagamento. Para ser devolvido à sua liberdade de circulação, o cidadão pagou a coima e o desbloqueamento. Depois, apresentou a sua reclamação, baseada em factos simples e fáceis de confirmar em poucos minutos. Ficou à espera da devolução do dinheiro da coima, o tempo suficiente para quase esquecer o episódio.

Tempo volvido, recebe nova notificação, as tais 5 folhas que me trouxe hoje, com uma decisão assinada pela Senhora Vereadora da CML. Apesar de ter pago o estacionamento, é acusado de negligência, por se ter enganado num algarismo da sua matrícula! É-lhe negada a devolução da coima paga e ainda lhe é exigido o pagamento de mais 51 € a título de custas. É-lhe dito que pode impugnar a decisão mas a notificação apressa-se  indicar que para tal terá de adiantar mais 102 € de taxa de justiça. Só não indica o provavel tempo de espera. A impugnação custará tambem os honorários do advogado, custo do qual não será reembolsado mesmo que ganhe a impugnação.O episódio está longe de ser raro e é um dos exemplos da irracionalidade, senão mesmo perversão e estupidez, que é uma das causas do atraso do País.

Vejamos o facto essencial: o cidadão pagou o valor do seu estacionamento. A coima é para quem não pagou. 

Tudo o que se possa dizer ao arrepio deste facto essencial é erro, é disparate. Por conseguinte, sancionar com uma coima um erro de digitação numa app é errado, injusto e fere a sensatez mais básica. Se eu tivesse defendido tal coisa nos meus anos de estudante, teria chumbado e teria merecido. A decisão que indefere a reclamação deste cidadão, apesar da prolixidade de termos jurídicos copiados à pressa, é exemplo vergonhoso da mais completa ignorância do que é o Direito e o raciocínio jurídico, do "à vontade" com que se aplica o rótulo de negligente a um cidadão e da preguiça de apurar e comprovar os factos. A assinatura da decisão por uma Vereadora deveria ter funcionado como garantia dos direitos do cidadão. Infelizmente não foi assim, porque o mais provável é esta peça ter sido assinada sem ter sido lida. Só isso explica que uma pessoa inteligente tenha assinado em vez de rejeitar o documento e ordenar logo o reembolso, com os juros legais e um pedido de desculpas ao cidadão. 

Direito à parte, também a gestão do dinheiro do Município merece reparo. Os tais 51 € tão injustamente extorquidos ao cidadão não pagam o tempo e dinheiro (nosso) que o Município gastou na labor de copy/paste das várias folhas da decisão, e na despesa postal para a notificar. Anda o país a gastar dinheiro para extorquir mais dinheiro, a gastar tempo e a ocupar pessoas em "diligências" inúteis. Quantos episódios, armadilhas e chantagens deste género  ainda se repetem por sistema? São parte das "instituições nacionais do abuso" de que falou Francisco Sousa Tavares. São as mazelas do "reino cadaveroso" a que Ribeiro Sanches e António Sérgio se referiram, nos séculos XVIII e XX. E agora, no século XXI? Quando é que a nossa administração será libertada desta preguiça do copy/paste, desta sobranceria ridícula que divide o país entre "Exas." e "negligentes", deste desprezo pelos direitos do cidadão e desta imunidade na dissipação de recursos públicos (pessoas, tempo, dinheiro, folhas de papel, etc.)? A cultura crítica (passe a redundância) existe mas, como escreveu António Sérgio, não impera ainda em Portugal. Enquanto continuarmos a dar espaço ao atavismo e à estupidez, podemos já não ser o tal "reino cadaveroso" mas seremos ainda uma república atrasada, que se distrai e desperdiça em inutilidades. Mal empregado papel, tal é a boçalidade do que lá foi impresso que até deve ser difícil de reciclar...

Desfecho deste episódio: aconselhei o cidadão a esquecer a privação da sua liberdade durante algumas horas, bem como a extorsão da coima e do "serviço de desbloqueamento". Aconselhei-o a pagar as custas e a desistir da impugnação. E disse-lhe que, embora de um modo muito diferente da EMEL, os advogados também trabalham à hora, pelo que era mais sensato pagar os 51 € do que continuar a gastar dinheiro numa causa de êxito duvidoso. Fez-se justiça? Não. Mas eu não posso aconselhar os cidadãos a gastar o seu dinheiro em batalhas que provavelmente irão perder ou que, sendo ganhas, terão uma recompensa inferior ao custo.

Carlos Campos

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