Primeiro caso: os eventos e espetáculos culturais estão suspensos, mas os eventos religiosos não. Não faltaram comentários críticos a esta “discriminação”. Convém esclarecer que a liberdade religiosa é constitucionalmente “inviolável”, ou seja, não pode ser suspensa (tal como o direito à vida e o direito à integridade física). Nenhum diploma legal ao abrigo do estado de emergência pode admitir a pena de morte, a tortura ou a violação da liberdade religiosa. Significa isto que se, a coberto da liberdade de professar uma religião se pode fazer tudo? Claro que não. Os eventos religiosos são uma das exceções, mas os organizadores estão obrigados a cumprir as regras de proteção e distanciamento. A Igreja Católica cancelou, de imediato todos os casamentos e batizados (não só por causa das cerimónias em si, mas para evitar os contactos nos festejos que se seguem). Poderia ter cancelado as missas presenciais? Sim, talvez até fosse adequado face ao risco que se enfrenta. Mas a decisão não é do governo. Num país com liberdade religiosa, são as igrejas quem decide as cerimónias que faz ou não faz, dentro das condições previstas na lei.
Segundo caso: os eventos culturais estão cancelados ou suspensos? A imprensa apressou-se a dizer que sim, está tudo cancelado ou suspenso. Uma vez mais, precipitou-se na corrida da “primeira mão”. O governo proibiu a realização de eventos culturais com esta ressalva: ““Em situações devidamente justificadas, os membros do Governo responsáveis pelas áreas da administração interna e da saúde podem, conjuntamente, autorizar a realização de outras celebrações ou eventos, definindo os respetivos termos.” (artigo 35, n.º 3, do decreto 3-A/2021). Por conseguinte, os promotores de eventos culturais podem assim solicitar a autorização de realização! E se quiserem ter êxito, não devem limitar-se a esperar que lhes sejam enunciadas as condições. Deverão ser os próprios interessados a submeter uma lista completa de medidas de proteção e distanciamento. É de admitir a realização de eventos culturais, desde que asseguradas as regras de proteção e distanciamento. A visita a uma exposição de pintura pode ser tão segura quanto uma corrida no jardim ou à beira-mar. Uma conferência, até mesmo um espetáculo de teatro, música, poesia, também. A regra da proibição justifica-se porque a cultura comporta todo o tipo de eventos e a possibilidade de garantir as condições de segurança sanitária diferem muito. Seguindo esta linha de raciocínio, a solução mais sensata é a de proibir (regra) mas admitir a autorização caso se cumpram determinadas regras. Foi isso que o governo decretou.
A propósito de cultura, há que reconhecer a catástrofe pessoal, profissional e cultural que está a acontecer neste setor. Não critico as medidas anunciadas para o setor. Quero apenas deixar uma proposta: 1 - Enquanto durar a suspensão dos espetáculos, o governo deveria promover a organização de três ou quatro espetáculos por semana - incluindo teatro, música, literatura/poesia, outras artes performativas – contratando o máximo número de artistas, técnicos e profissionais do setor para esses espetáculos; 2 – Esses espetáculos deveriam ser transmitidos em ‘prime time´ nos canais TV generalistas, e posteriormente repetidos noutros dias e horários; 3 – As receitas da publicidade associadas a essas transmissões deveriam reservar uma percentagem digna para os apoios aos profissionais da cultura. Quero acreditar que as “audiências” aceitariam, bem estas três ou quatro transmissões por semana.
Terceiro caso: os livros e as roupas. A imprensa apressou-se a noticiar que os supermercados não poderiam ter à venda produtos como livros, roupas, artigos desportivos e artigos de decoração. A febre da “primeira mão” levou a que se esquecessem de mencionar que a lista de artigos só seria definida mais tarde. Mas logo surgiram comentários: então os livros e o vestuário não são bem de primeira necessidade? É uma pergunta retórica e pouco útil para esclarecer esta questão. O decreto governamental estabelece: “O membro do Governo responsável pela área da economia pode, mediante despacho, determinar que os estabelecimentos de comércio a retalho que comercializem mais do que um tipo de bem e cuja atividade seja permitida no âmbito do presente decreto não possam comercializar bens tipicamente comercializados nos estabelecimentos de comércio a retalho encerrados ou com a atividade suspensa nos termos do presente decreto”. É fácil de intuir o duplo objetivo desta norma: (a) reduzir o afluxo de pessoas aos estabelecimentos abertos e (b) evitar a distorção da concorrência entre retalhistas abertos e retalhistas encerrados. Portanto, compreendo a medida. Agora os livros… No caso dos livros, eu não fecharia livraria alguma (já bastam as que fecham devido a outras “pandemias”…).
Quarto caso: os tribunais. Antes do decreto, o Conselho geral da minha Ordem dos Advogados apressou-se apelar ao governo para não suspender o funcionamento dos tribunais, invocando a disposição constitucional que impede que a legislação ao abrigo do estado de imergência afete a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania (art. 19.º, n.º 7). Não concordo com esta interpretação. A prevenção sanitária pode justificar a suspensão de diligências judiciais sem que isso seja inconstitucional, atentado ao estado de direito ou atropelo à separação de poderes. A suspensão com tal fundamento não afeta as regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos tribunais. Se assim fosse, o ato legislativo de criação ou extinção de um feriado seria também inconstitucional. É claro que um tribunal fechado afeta a concretização do direito à justiça e dos direitos que ela visa assegurar. Mas também existe o direito à saúde. O governo optou por não interferir no calendário dos tribunais. Foi a melhor solução? Admito que sim. Sabemos que na prática, haverá adiamentos, faltas justificadas pelo isolamento profilático, etc.. Resta esperar que os tribunais, no uso das suas competências próprias, saibam gerir os respetivos calendários e o modus faciendi da prevenção. Por exemplo, evitando aglomerações e tempos de espera à porta ou nos corredores.
Uma palavra final. O decreto governamental foi criticado por ter muitas exceções. É uma crítica que não partilho. O problema não está no número das proibições e das exceções. Está no seu incumprimento. Não são as normas que vendem as pandemias. São as pessoas.
Carlos da Silva Campos
Na foto: Os Livreiros da Buchholz para quem mando abraços.