11 Jul
11Jul


Com a evolução da pandemia COVID-19 evolui o conhecimento não só dos seus efeitos primários, mas também dos seus efeitos secundários. Entre eles, a o risco de diminuição da sensatez e da capacidade de raciocínio, com a agravante de estes efeitos poderem produzir-se em pessoas que não chegaram a ser realmente infetadas pelo coronavírus. O fenómeno não é novo: a maior parte das doenças não afeta apenas os pacientes, mas também os que os rodeiam.

Perante as "notícias" que médicos que se sentem "desautorizados" por juízes e de juízes que apontam para as falhas dos legisladores, vem-me à memória a lição do professor de processo penal a propósito das relações entre polícias e advogados: "sim, é possível que andem em conflito, mas se cada um agir com a competência e rigor exigíveis à sua profissão, não há razão para se darem mal". Que fazem os juízes neste cenário pandémico?


A tese da privação da liberdade


Exemplo da reversão de uma decisão de isolamento profilático é o Acórdão da Relação de Lisboa de 11/11/2020 que confirmou uma sentença de 26 de agosto de 2020, que concedeu provimento a um pedido de habeas corpus e "restituiu à liberdade os requerentes". Desconheço se tal Acórdão, bem como o Acórdão do Tribunal Constitucional de 31 de julho de 2020, iniciaram ou integram uma "corrente" ou "tendência jurisprudencial". Espero que não porque me parece que faltou sensatez e rigor em pelo menos algumas das teses utilizadas na respetiva fundamentação. Quanto ao caso concreto, e sem grande profundidade ou detalhe, não me custa acreditar que algumas pessoas possam ter sido indevidamente retidas no hotel durante tempo demasiado, por pessoas que podem cometido um excesso de zelo e que, se foi o caso, não agiram - magister dixit - com a competência e rigor exigíveis à sua profissão. O que sucede é que o tribunal não avaliou os atos nem a sua conformidade, preferindo as teses fáceis e simplistas. A primeira das teses a que me refiro é esta: o isolamento profilático (pessoa infetada) e a quarentena (pessoa com contacto de risco) são formas de privação de liberdade. Como a Constituição tipifica (art. 27.º, n.º 3) os casos admissíveis de privação da liberdade e o isolamento ou quarentena não estão na lista, todas as decisões que determinam isolamentos, quarentenas, confinamentos, etc. são inconstitucionais, independentemente de serem determinadas por médicos, autoridades de saúde, governantes ou legisladores. O Acórdão diz também que os atos previstos na Base 34 da Lei de Bases da Saúde (internamento ou a prestação compulsiva de cuidados de saúde a pessoas que, de outro modo, constituam perigo para a saúde pública) são materialmente inconstitucionais porque esses atos não estão na lista dos casos admissíveis de privação de liberdade. Seja qual for a "nomenclatura" - isolamento, quarentena, confinamento - são privação da liberdade, carecem de lei da AR, de validação judicial, legitimam recurso ao habeas corpus e, por conseguinte, podem ser revertidas por decisão judicial. De acordo com esta tese, todas as medidas de isolamento, quarentena, confinamento, que se tomaram e continuam a tomar todos os dias, são ilegais e podem ser revertidas por um juiz. 

Do meu modesto ponto de vista, esta tese peca por uma gritante falta de sensatez cidadã e de rigor jurídico. A ser assim, todos os diretores de escolas e autoridades de saúde locais que, cumprindo as orientações (não vinculativas) da DGS, suspendem salas e mandam para casa as crianças e jovens só porque o pai de uma delas testou positivo, violam os direitos e liberdades das crianças...

A ser assim, manter uma pessoa suspeita de infeção numa "sala de isolamento" até chegar o INEM é um ato inconstitucional de privação de liberdade...

A ser assim, o doente internado numa ala de infetocontagiosos pode reagir com um pedido de habeas corpus contra uma "detenção" ilegal. Em rigor, todo e qualquer internamento (a "nomenclatura" pouco interessa, diz o Acórdão da Relação), seria então uma privação de liberdade que só poderia ser legal se determinada ou validada por juiz...

A ser assim, o médico que manda cidadãos infetados ou suspeitos de infeção para isolamento domiciliário ou quarentena é como um agente pidesco que retém um cidadão durante mais de 48 horas sem o apresentar a um juiz… A prescrição de quarentena é como uma detenção sem culpa formada... 

A ser assim, até o sinal de trânsito que me obrigou a dar a volta a vários quarteirões pode ser considerado uma violação da minha liberdade de circulação...

A ser assim, todas as autoridades que nos impeçam de velejar, de voar ou simplesmente de passear à beira mar em dia de tempestade podem estar a violar a constituição...

A liberdade é circundada por uma fita leve e ondulada por ventos de todas as direções. Em sentido filosófico, defini-la é correr o risco de a limitar. Para afastar as consequências absurdas da tese que alguns juízes aceitaram com tanta facilidade, nem sequer é necessário recorrer ao argumento dos limites da liberdade ou da prevalência de um valor superior. Basta procurar um conceito jurídico de liberdade. O Tribunal Constitucional segue um conceito físico de liberdade: "A privação da liberdade traduz-se numa perturbação do âmago do direito à liberdade física, à liberdade de alguém se movimentar e circular sem estar confinado a um determinado local, sendo a essência do direito atingida por um determinado tempo (que pode ser, aliás, de duração muito reduzida)" (Acórdão n.º 479/94). Todavia, o âmago do problema não se limita ao efeito (físico). Mil e uma coisas controladas pelo homem podem limitar os nossos passos, acessos e deslocações, sem que faça sentido falar de privação da liberdade. Um ato de privação de liberdade não se carateriza apenas pelo efeito. É necessário avaliar a sua finalidade e também a legitimidade de quem o pratica. A tripla análise - efeito, legitimidade, finalidade - permite avaliar a adequação e a proporcionalidade do ato. Se o ato de isolamento ou confinamento é adequado e proporcional para o efeito sanitário (prevenir a infeção), estamos fora do campo de previsão da norma constitucional que limita os atos de privação da liberdade.

Quando os nossos deputados constituintes escreveram a norma fundamental que limita as situações de privação da liberdade não estavam a pensar em vírus, pandemia, isolamento profilático ou confinamento sanitário, não estavam a pensar em obras públicas, que impedem temporariamente acessos e circulação, não estavam a pensar em incêndios ou catástrofes naturais, que podem implicar evacuações ou restrições de acesso. Estavam a pensar em abusos de autoridade, em motivos políticos ou ideológicos. A privação de liberdade a que se refere o artigo 27.º da Constituição não é um conceito filosófico. É um conceito jurídico que, como todos os outros, necessita de ser compreendido, interpretado e aplicado. 

Os seres humanos têm o direito inalienável de se abraçarem. Isso não significa que as recomendações de distanciamento social ou as restrições de número de pessoas por mesa sejam, por definição, atos de privação de liberdade, no sentido constitucional.

O ato médico prévio e a falibilidade dos testes

No referido Acórdão da Relação, encontramos uma segunda tese: "qualquer diagnóstico ou qualquer ato de vigilância sanitária (como é o caso da determinação de existência de infeção viral e de alto risco de exposição, que se mostram abrangidas nestes conceitos) feitos sem observação médica prévia aos requerentes, sem intervenção de médico inscrito na OM (que procedesse à avaliação dos seus sinais e sintomas, bem como dos exames que entendesse adequados à sua condição), viola tal Regulamento, assim como o disposto no artº 97 do Estatuto da Ordem dos Médicos, sendo passível de configurar o crime p. e p. pelo artº 358 al.b) (Usurpação de funções) do C.Penal, se ditado por alguém que não tem tal qualidade, isto é, que não é médico inscrito na Ordem dos Médicos". A esta "leitura" da lei são acrescentadas ideias não menos disparatadas: (i) o teste é inválido e inútil se a pessoa não for antes vista por médico e (ii) o teste não pode justificar as medidas sanitárias, porque é falível (p. ex., por poder resultar em "falsos positivos"). O tribunal pode assim reverter uma decisão de isolamento e ou quarentena mesmo que uma das pessoas envolvidas tenha testado positivo, porque pode ser um falso positivo. O teste só tem relevância se for precedido de consulta e exame médico e mesmo assim, continua a ser falível e a medida preventiva só é válida se o caso for levado a um tribunal para que valide a "privação de liberdade"...

O "argumento" do Acórdão acumula erros. Em primeiro lugar, o facto de o teste ser um ato médico (no sentido preciso de ato próprio da profissão, que não pode ser usurpado por não profissionais) não permite concluir, sem mais, que o teste só é válido se for precedido de observação médica. Trata-se de um erro de raciocínio. Em segundo lugar, o Acórdão indica que "não há qualquer indicação nem prova, de tal diagnóstico ter sido efetivamente realizado por profissional habilitado nos termos da Lei e que tivesse atuado de acordo com as boas práticas médicas". Neste ponto, o Acórdão subverteu as regras básicas do ónus da prova e desprezou o facto de o próprio teste, quando feito sob a responsabilidade laboratório licenciado, ser ele próprio um ato médico específico. O Acórdão não faz qualquer referência ao facto de os resultados de um teste serem obrigatoriamente validados por médico com especialização em patologia clínica ou análises clínicas (artigos 5.º e 15.º. n.º 1 da Portaria 392/2019, de 5 de novembro). Em terceiro lugar, o teste COVID é um meio de diagnóstico, mas não se confunde com o diagnóstico completo propriamente dito. Para que tenha de haver lugar a medidas preventivas especiais (incluindo o isolamento profilático), não se exige o diagnóstico completo da pessoa em questão, basta que o resultado do teste seja positivo. Compreende-se bem porquê: há razões de urgência e precaução que não podem deixar de ser atendidas e que não podem esperar pela disponibilidade de um médico. O Acórdão da Relação saltou tudo isto e, confrontado com um teste positivo, passou diretamente a questionar a fiabilidade dos testes, extravasando a sua esfera de funções. Citando o Acórdão: "existindo tantas dúvidas científicas, expressas por peritos na matéria, que são as que aqui importam, quanto à fiabilidade de tais testes, ignorando-se os parâmetros da sua realização e não havendo nenhum diagnóstico realizado por um médico, no sentido da existência de infeção e de risco, nunca seria possível a este tribunal determinar que AH___ era portadora do vírus SARS-CoV-2, nem que SH__SWH__ e NK_ tivessem tido exposição de alto risco". Ou seja, praticamente todos os testes que se fizeram e fazem são inúteis. Como é possível que juízes tenham escrito e subscrito tal coisa?

Quer isto dizer que não podemos suspender uma sala escolar se a criança que teve contacto de alto risco não for examinada por médico e depois, só depois, submetida a teste? E que fazemos enquanto o médico não chega? Que fazemos quando a notícia do contacto de alto risco chegou ao fim do dia?

A menos que a pandemia decretada pela OMS seja pouco mais que uma paranoia, alucinação coletiva ou gigantesca encenação, a falibilidade dos testes e a margem de eficiência que falta às vacinas não podem servir de "argumento" desvalorizante. Se o teste é falível, a falta dele cria uma contingência - um risco - incomparavelmente maior. A alegação da falibilidade e inutilidade do teste padece de uma confrangedora falta de lógica. O mesmo se passa com as vacinas. A falta de lógica já tem levado pessoas a afirmar são inúteis porque as pessoas vacinadas têm de continuar a praticar as medidas básicas (máscara, distância, etiqueta respiratória, desinfeção das mãos). O objetivo da vacina não é pôr fim ao incómodo das medidas - é, em termos individuais, evitar a infeção e, em termos coletivos, atingir a "imunidade de grupo". Se a eficiência (prevenir a infeção da pessoa vacinada) não é total, subsiste o risco de infeção ou reinfeção e por isso as outras medidas continuam a ser necessárias. Se a vacina não elimina o risco de transmissão (isto é, de a pessoa vacinada poder transmitir o vírus a outras), então, as medidas continuam a fazer sentido. Estamos menos inseguros com testes e vacinas falíveis do que sem eles. Tal como estamos menos inseguros se lavarmos as mãos, usarmos máscara, taparmos a tosse ou o espirro e mantivermos a distância (por muito que essas medidas sejam falíveis). 

Prefiro todas essas coisas falíveis que limitam a minha liberdade do que salvaguardar a liberdade na paz do cemitério.

A "doutrina" deste Acórdão invalida praticamente todas as medidas de prevenção e combate à infeção por COVID-19, aproxima-se da fraseologia negacionista e só contribui para a confusão e irresponsabilidade.

As leis - ou a falta delas - não são desculpa

O legislador, com os seus atrasos, precipitações e com a propensão para produzir normas confusas ou pouco claras, tem grandes responsabilidades. A legislação COVID é um puzzle com muitas peças defeituosas que frequentemente não encaixam, para além do labirinto formal desnecessário a que submetem quem teve e ainda tem de as conferir e aplicar diariamente. A má técnica legislativa não é, todavia, um problema novo. As leis são como os testes, as vacinas, os médicos, os juízes, os advogados: falíveis. Mas uma má lei não é desculpa suficiente para uma má decisão. A justiça deve ousar a perfeição e a primeira exigência de tal ousadia é não aplicar regras cujo resultado é absurdo e não foi desejado por ninguém. Na interpretação e aplicação das leis, não se pode presumir que o legislador é insensato, maléfico ou trapalhão. As boas regras de interpretação (artigo 9.º do Código Civil) vão no sentido oposto. 

Do mesmo modo, a falta de uma lei não pode ser desculpa no momento de julgar. Já se tem dito que falta legislar sobre emergências sanitárias, estados de calamidade, etc.. e que o governo e o parlamento já deveriam ter legislado sobre essas matérias, para poder legitimar as medidas de prevenção e combate que todos conhecemos. Em todo o caso, a aparente "falta de leis" não deve ser remediada com a precipitação de leis "em cima do acontecimento". O argumento da "falta de lei" é inadmissível na hora de julgar. Não é sequer necessário presumir que o "sistema jurídico" é perfeito. Todo o sistema humano tem lacunas, mas nenhuma pode ficar sem solução, seja ela a analogia (rectius, a norma aplicável aos casos análogos) ou a integração (a norma que o intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema). Julgar é bem mais exigente do que enunciar a letra da lei, tarefa que, mais tarde ou mais cedo, poderá ser feita com algoritmos e software. Para julgar, serão sempre necessárias pessoas. Juízes. Que - magister dixit - saibam agir com a competência e rigor exigíveis à sua profissão.

Os efeitos da pandemia

Exprimimos a ideia da caraterização do ato privativo de liberdade física pelo seu efeito, legitimidade e finalidade, completada pela análise da sua adequação e proporcionalidade. Não custa reconhecer que a situação pandémica alterou inevitavelmente os critérios de aferição destes parâmetros. Quanto aos efeitos, todos sabemos que as medidas mais drásticas não tiveram apenas efeitos sanitários, tiveram também efeitos económicos, alguns deles bem graves (privaram pessoas das suas fontes de rendimento, da sua liberdade económica). Quanto à legitimidade, temos também de admitir - por uma questão de sensatez básica - que a necessidade de prevenção criou legitimidades que não existiam. Não é necessário um diagnóstico médico individual prévio para que uma pessoa seja colocada em isolamento à espera do INEM ou do teste - basta uma das combinações de sintomas típicos. Exigir um diagnóstico médico completo e individual para fundamentar uma medida preventiva é uma ideia perigosa. Em situação pandémica, surgem "legitimidades" inesperadas, desde o operador do serviço SNS24 que dá a indicação de isolamento até ao diretor de escola que fecha uma sala. Atribuir a essas pessoas a autoria de atos materialmente inconstitucionais é tão absurdo como invocar a Constituição contra um bombeiro que nos expulsa de casa, contra um agente de segurança que nos impede de entrar num recinto enquanto a brigada de minas e armadilhas não confirma a existência de um engenho explosivo num pacote abandonado, ou contra um agente policial que nos impede de circular na proximidade de um prédio "só" porque existe uma hipótese de risco de desabamento...

Também a ideia de finalidade se altera em contexto pandémico. A finalidade preventiva (reduzir contactos) pode justificar medidas que seriam absurdas fora do contexto de pandemia. Numa sociedade livre, as restrições da vida noturna ou das deslocações em fins de semana são inadmissíveis, ridículas ou absurdas. Habituadas à liberdade, algumas pessoas insistem a ridicularizar essas medidas, ironizando com frases do género "o vírus só trabalha de noite e nos fins-de-semana". Mas se tivessem concedido a si próprias algum tempo de reflexão, teriam reconhecido que, em regra, as saídas ou deslocações noturnas e em fins-de-semana propiciam contactos em número superior e com pessoas diferentes daquelas que fazem parte dos períodos diurnos e em dias úteis. Neste contexto, em que as noções de efeito, legitimidade e finalidade se alteram, o mesmo terá de suceder com a avaliação da adequação e proporcionalidade das medidas.

As autoridades de saúde lembraram que cada cidadão é um agente de saúde pública. Não é uma "investidura" excecional para situações de pandemia, mas uma ideia acertada para toda e qualquer circunstância. É claro que não estamos livres de medidas exageradas ou mesmo abusivas. Qualquer pessoa se pode enganar, por omissão ou por excesso na imposição de restrições preventivas. Isso não significa que seja necessário invocar a Constituição, o habeas corpus, a defesa da liberdade, nem significa que se devam "inutilizar" os testes por serem falíveis ou falar de "usurpação de funções". Teriam bastado uma avaliação criteriosa da adequação e proporcionalidade dos atos e o recurso a figuras jurídicas como a responsabilidade (profissional, civil, contratual). Podemos questionar as medidas de prevenção e combate à pandemia, mas trazê-las para o domínio da defesa da Constituição e da liberdade é inadequado e exagerado. Sobretudo num país em que, sem razão de emergência ou estado de sítio, se continuam a cometer abusos de autoridade em detenções ilegais, em que se detém para investigar (em vez de investigar para deter), em que se abusa da proibição sem necessidade. A ideia de juízes a reverter medidas antipandémicas e decisões médicas é um disparate que só tem utilidade para jornais sensacionalistas. Todos lembramos os "médicos que internaram opositores em "hospitais psiquiátricos" noutros tempos soviéticos. Mas as medidas preventivas a que a pandemia nos obrigou estão longe disso. São medidas que combatem um vírus, não as ideias das pessoas. Cuidado senhores Magistrados: quem limita a nossa liberdade é o vírus, não é o médico, nem a DGS, nem o diretor da escola ou da empresa. Redde Cæsari quæ sunt Cæsaris.

Carlos da Silva Campos

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