06 Mar
06Mar

Em novembro de 2019, numa entrevista à BBC, Mikail Gorbachov recordou o momento da queda do muro de Berlim e referiu que, por decisão do 'politburo' (leia-se decisão sua), a URSS decidiu não interferir [1]. Esse momento foi marcante, não só por ter iniciado uma nova era na geopolítica, mas pelo facto de o muro ter caído por vontade e ação direta dos cidadãos, não dos governantes ou diplomatas. A reunificação da Alemanha “era um assunto para os Alemães. Era a eles que cabia decidir” – disse Gorbachov. Esta declaração aparentemente banal continha uma das chaves para a nova era, mas nem Yeltsin nem Putin quiseram saber dela [2]. De resto, os principais líderes ocidentais também não. Que Putin ignore ostensivamente a vontade das pessoas, não admira. Dos líderes ocidentais é que seria de esperar mais inteligência. 

A invasão da Ucrânia é o culminar do processo iniciado em 2014, com a invasão e anexação da Crimeia[3]. Na altura, o ocidente agiu como se compreendesse as razões de Putin, apesar de serem mentiras descaradas. Putin disse que a intervenção tinha sido pedida pelos residentes da Crimeia e que se destinava a “assegurar as condições para que o povo da Crimeia possa exprimir a sua vontade[4].  Nessa conferência de imprensa, Putin disse que tinha falado previamente com os membros do Conselho de Segurança e que “todos eles apoiaram a minha posição”. O “referendo” realizado sob ocupação militar e sem observadores imparciais, nunca foi reconhecido. Outra razão muito referida na imprensa ocidental foi a necessidade da Rússia de preservar o acesso ao Mar Negro. De facto, a anexação permitiu ampliar as reivindicações territoriais nessas águas e deu azo a vários incidentes [5], mas basta olhar para o mapa para constatar que a Rússia sempre teve acesso direto e amplo ao Mar Negro. A construção de uma ponte de 20 km para ligar a Crimeia à Rússia evidencia uma intenção bem diferente: controlar a passagem entre o Mar de Azov e o Mar Negro. A União Europeia reagiu com sanções económicas, mas inconsequentes. Apesar da falta de reconhecimento internacional, a ocupação da Crimeia tornou-se um facto consumado. Os acontecimentos posteriores à ocupação e anexação tornaram evidente que a Crimeia foi apenas o primeiro passo. A interferência da Rússia nas regiões do sudeste da Ucrânia (Donetsk, Luhansk), favorecendo os movimentos separatistas, evidenciavam o propósito de destabilizar o poder da Ucrânia e fornecer o pretexto para nova intervenção. Putin voltou a usar a mesma retórica: reconheceu as repúblicas separatistas “criadas” em 2014 para fabricar um “pedido de ajuda” das mesmas e assim “justificar” a invasão da Ucrânia [6]. Um olhar sobre o mapa da invasão de 2022 e a observação do rasto de destruição e morte deixado pelas tropas e mísseis russos permite constatar que esse “motivo” não é mais do que uma das mentiras de Putin. 

Entre 2014 e 2022, a região sudeste da Ucrânia, rica em carvão e aço e habitada por mais de 6 milhões de pessoas, sofreu um êxodo de milhões de pessoas para outras regiões da Ucrânia, enquanto algumas centenas de milhares de pessoas fugiram para a Rússia. Em 2014, com um poder fraco e instável, as autoridades de Kyiv não conseguiram controlar os movimentos separatistas, apoiados militarmente pela Rússia. Os acordos de Minsk (fevereiro de 2015) estabeleceram um frágil cessar fogo entre o exército da Ucrânia e a as forças separatistas. Sob proteção da Rússia, os separatistas restauraram a vigência da Constituição da época de Stalin, fecharam a fronteira a estrangeiros (exceto estrangeiros) e ucranianos sem familiares residentes (os ucranianos com familiares residentes podem entrar mas apenas dando a volta pela Rússia) e tornaram-se os únicos territórios da Europa com pena de morte. Enquanto os separatistas instauraram um regime totalitário repressivo à moda da URSS dos anos 30, a Rússia forçou um processo de “russificação” (moeda, manuais escolares e passaportes russos, transferência das sedes das empresas para a Rússia), mas só parcialmente foi bem sucedida: nas vésperas da invasão, a estimativa de ucranianos residentes com nacionalidade russa representava 15 a 25% da população e o controlo territorial pelos separatistas era inferior a metade da área de toda a região sudeste da Ucrânia (Donbas) [7]. Apesar das indústrias do carvão e do aço, esta região é pobre. A maior parte dos lucros destas indústrias e das ajudas humanitárias eram desviados para oligarcas e outros criminosos, enquanto a Rússia tem mantido uma despesa anual de muitos milhões de dólares para sustentar as forças separatistas. A ocupação pode servir para libertar a Rússia desse encargo, recorrendo aos recursos da Ucrânia. 

Outra das mentiras descaradas de Putin é a referência à “desnazificação” da Ucrânia, feita no discurso aos russos do dia 24/2/2022 e a necessidade de proteger as pessoas que “desde há oito anos, têm enfrentado a humilhação e o genocídio perpetrado pelo regime de Kyiv” [8]. Não existe evidência alguma de genocídio na região. Segundo o fact checking da BBC, o número de mortes nos conflitos entre os separatistas armados pela Rússia e o exército da Ucrânia entre 14 de abril de 2014 e 21 de fevereiro de 2020, foi de 3407 civis, 4400 militares ucranianos e 6500 membros das forças armadas separatistas. O número de feridos calcula-se em 39000 pessoas, das quais 7000 a 9000 civis [9]. Putin usou as baixas causadas pelo separatismo que financiou durante ambos para “justificar”… mais baixas com a invasão. 

O mesmo e outros discursos de Putin referem-se à alegada insegurança da Rússia face à expansão da NATO. O “argumento” não é novo, há muito que Putin se queixa dessa expansão alegando que o Ocidente não está a cumprir o compromisso de manter a linha de divisão da NATO, como contrapartida da não interferência da Rússia na reunificação da Alemanha. Efetivamente, a NATO teve uma expansão expressiva desde a queda do muro de Berlim (1989) e reunificação da Alemanha (1990). Desde então entraram na NATO a Hungria e a Polónia (1999), a Bulgária, a Eslovénia, a Eslováquia, a Estónia, a Letónia, a Lituânia e a Roménia (2004), a Albânia e a Croácia (2009), a República de Montenegro (2017) e a Macedónia do Norte (2020). 

Esta expansão da NATO para o anterior “território” do extinto “Pacto de Varsóvia” foi encarado por vários modos na Europa. Chegou a pensar-se que a NATO tinha perdido o seu “inimigo”. Depois, quando os países do extinto “Pacto de Varsóvia” começaram a entrar na NATO, não faltou quem alertasse para o risco de a Rússia se sentir isolada e começar a armar-se. Até mesmo Mário Soares, um dos mais sagazes políticos portugueses se enganou estrondosamente quando, em 2008, escreveu estas linhas: “o desastre do Afeganistão/Paquistão está a corroer e a desacreditar a NATO – o que do meu ponto de vista não tem grande importância, visto que hoje é uma organização que não faz sentido […].A NATO, que se tornou um verdadeiro braço armado dos Estados Unidos, está a fazer também estragos noutras regiões do mundo. Refiro-me ao Cáucaso, às zonas do Cáspio e do mar Negro e aos países limítrofes da Rússia Ocidental. Estes quiseram logo entrar para a NATO, com a ilusão de que teriam mais garantias de segurança, sob o chapéu americano, do que na União Europeia... E a NATO, cercando a Rússia e instalando na Polónia e na República Checa bases de mísseis, começa a ser uma ameaça para a Rússia, que a pode tornar agressiva. Um perigo! […]Putine não é Hitler e não ressuscitemos a «guerra fria»... Cheney foi à Ucrânia, onde tentou também dividir os dirigentes políticos, estimulando a primeira-ministra, Iúlia Timoshenko, anti-russa, contra o Presidente, Victor Yushchenko, mais apaziguador” [10].  

Dificilmente o estadista português poderia estar mais enganado. Reconheceu parcialmente o erro cerca de sete anos depois quando a propósito da ingerência militar russa na Ucrânia, escreveu “Vladimir Putin é um homem perigoso. Ou, como dizem os brasileiros, um homem astuto, perigoso e imprevisível” [11]. Mário Soares, europeísta convicto, não foi o único a enganar-se sobre Putin. O presidente Macron em 2019 ainda excluía a Rússia do conceito de inimigo: “Será que o nosso inimigo é a Rússia, como por vezes ouço dizer? É a China? Deve a NATO defini-los como inimigos? Não acredito nisso. O nosso inimigo comum hoje é o terrorismo que já atingiu cada um dos nossos inimigos” [12]. Isto foi dito depois da ocupação da Crimeia. Macron ainda acreditava no diálogo com Putin… Em fevereiro de 2022 foi recebido em Moscovo para falar com Putin… a mais de 6 metros de distância, tratamento depois repetido com o chanceler Scholz [13]. 

A ideia de que o avanço da NATO para leste representava uma ameaça para a segurança da Rússia parece ter nascido na cabeça de alguns políticos ocidentais e Putin utilizou-a para justificar a sua corrida aos armamentos, para invadir a Ucrânia e, nas semanas mais recentes, para ameaçar os países europeus que ainda não são membros da NATO. Mas isso não significa que a ideia tenha correspondência com a realidade. Como é que a NATO ameaça o território ou o povo da Rússia? Tem ambições de invasão, domínio ou destruição? 

Ao contrário do que diz Putin, a expansão da NATO não resulta da iniciativa dos seus membros, ou de alguns deles. A NATO ou os seus membros não andam a recrutar novos membros nem a invadi-los. Todos os países que entraram na organização depois da queda do muro de Berlim fizeram-no a seu pedido. Na origem desses pedidos estão factos muito simples. Primeiro, a Rússia deixou de ser considerada como garante de segurança desses países (alguma vez terá sido?). Segundo, os novos membros pediram para entrar depois de terem optado pela democracia eleitoral. Não rejeitaram apenas o regime “comunista” a favor do sistema “capitalista”. Rejeitaram, sobretudo, a autocracia. E a NATO foi fundada precisamente para proteger os valores e modos de vida da democracia e da liberdade. A opção pela NATO não foi uma decisão de geopolítica de elites, foi uma decisão legitimada pelo voto, uma decisão baseada na geopolítica dos povos. 

A NATO já respondeu diretamente ao “argumento” de Putin. No seu website, pode ler-se a resposta lapidar: “Cada nação soberana tem o direito de escolher os seus próprios sistemas de segurança. Este é um princípio fundamental da segurança Europeia, um dos que a Rússia também subscreveu (ver a Ata Final de Helsínquia ). Quando a Rússia assinou NATO-Russia Founding Act, também se comprometeu a defender o “respeito pela soberania, independência e integridade territorial de todos os estados e o seu inerente direito a escolher os meios de assegurar a sua própria segurança. A Ucrânia e a Geórgia têm o direito de escolher as suas próprias alianças, e a Rússia não tem, pelo seu próprio e reiterado compromisso, o direito de ditar essa escolha. Nós rejeitamos toda e qualquer ideia de esferas de influência na Europa – elas são parte da história e devem continuar a ser parte da história ” [14]. 

A invasão da Ucrânia fez despertar a NATO, como fez despertar a União Europeia. Ainda é cedo para se saber se foi apenas um despertar ou se vão mesmo mudar a sua linha de ação. Discursos diplomáticos à parte, há que por definitivamente de lado a ideia de que o “inimigo” mudou. Basta ler o documento do Tratado da NATO para se constatar que não existe grande dificuldade em identificar o inimigo da NATO, contra o qual as defesas (políticas, económicas, diplomáticas e militares) devem estar preparadas. O inimigo é tudo o que contrarie ou impeça "a liberdade, o legado comum e a civilização de seus povos, fundados nos princípios da democracia, da liberdade individual e do estado de direito" (artigo 2.º do tratado). 

Voltando ao argumento de Putin: por que razão a expansão da NATO para leste é uma ameaça para o regime de Putin? Se a ameaça não é militar, porque preocupa tanto o autocrata do kremlin? Por que razão o levou a agir militarmente na Ucrânia? 

A procura da resposta a esta questão leva-nos a recapitular a questão ucraniana e, especialmente, a questão da alta corrupção que carateriza o país. Os responsáveis ucranianos pela luta contra a corrupção perceberam depressa que o seu trabalho não era do agrado das autoridades russas. Num artigo publicado em dezembro de 2021, dois dos diretores do Centro de Ação Anticorrupção da Ucrânia (ACREC) disseram que “a democratização do país e os esforços contínuos para combater a corrupção e o clientelismo instalados são uma ameaça para o modelo de governação de Putin[15]. A afirmação é fácil de entender: a corrupção ucraniana seguiu o modelo russo, que combina autocracia, oligarquia e cleptocracia. Aos primeiros e evidentes sinais de rejeição desse modelo, que culminaram com a fuga de Viktor Yanukovych, o presidente pró-russo, em fevereiro de 2014, a Rússia invadiu a Ucrânia.  

A estratégia anticorrupção seguiu os trâmites normais que envolvem regras de transparência: o acesso às bases de dado do estado e aos registos de propriedades, as declarações de rendimentos dos funcionários públicos, um novo sistema de compras do Estado (ProZorro, i.e. PróTransparência), a digitalização dos procedimentos administrativos e a criação de uma Agência Nacional Anti-Corrupção (NABU[16]). Apesar de constituírem uma base importante, estas medidas estiveram longe de produzir grandes resultados práticos [17]. A luta contra a corrupção tem frentes distintas: uma coisa é combater os hábitos entranhados de suborno de funcionários púbicos (a pequena e média corrupção), outra é pôr em causa a alta corrupção que alimenta as oligarquias. Em todo o caso, os passos dados foram mais que suficientes para irritar os oligarcas e a Rússia. “O grosso da luta contra a oligarquia ainda está para vir”, disseram os responsáveis do ACREC. Essa luta passava também pelo Comité Anti-Monopólio, uma clara ameaça para os oligarcas. Para eles e para a Rússia, a evolução política da Ucrânia revelou uma segunda ameaça: a visibilidade de uma transição pacífica para uma democracia eleitoral genuína. Como essa transição estava a resultar, a Rússia voltou a mobilizar a sua força militar para concluir o que tinha começado em 2014.  

O tema da corrupção está no centro da questão ucraniana. Nem seria de esperar o desmantelamento rápido porque a corrupção, a oligarquia e a cleptocracia têm, neste caso, caráter estrutural e sistémico. Este “sistema” beneficia da proteção estatal do regime russo e da cumplicidade pragmática dos interesses ocidentais. Organizações como a Global Financial Integrity[18], a Financial Transparency Coalition[19], o Atlantic Council[20] e a Carnegie Europe[21] tem denunciado e documentado o modo como os mercados imobiliários e financeiros dos EUA tem sido o sonho ou o paraíso dos cleptocratas[22]. A natureza criminosa das oligarquias era bem conhecida das autoridades norte-americanas[23]. As ligações internacionais, perigosas mas sólidas, dos oligarcas sobreviveram às medidas anticorrupção. Mesmo o presidente Volodimir Zelenskyy, eleito em 2019 com 72% dos votos, não conseguiu impor avanços significativos no combate à corrupção[24]. O seu primeiro ano de mandato, iniciado sem uma equipa competente e preparada, foi uma desilusão. Choveram as críticas da oposição, a que a imprensa detida por alguns oligarcas deu a devida ressonância. A imprensa europeia fez eco da desilusão[25] mas não aprofundou muito o assunto. Claramente pró-europeu, Zelenskyy, pediu assistência para a luta contra a alta corrupção. Apesar de alguns apoios, como foi o caso da Rede Anticorrupção para a Europa Oriental e a Ásia Central (OCDE)[26] [27], a Ucrânia não teve o apoio necessário. A Europa andou distraída durante todo o tempo. Ou, pelo menos, pouco atenta[28].  

A Rússia, por seu turno estava atenta. Em meados de 2021, o relatório  “Anti-Corruption Review of the Energy Sector in Ukraine”, culminando um projeto de investigação de anos com peritos da OCDE, expôs alguns esquemas da alta corrupção sistémica no setor da energia e deu ao governo da Ucrânia um conjunto de recomendações. A perspetiva de essas recomendações começarem a ser implementadas foi um sinal de alarme para a Rússia e para os oligarcas sem pátria. 

Qual o papel do presidente Zelenskyy na questão da corrupção? Apesar de todos os esforços dos governantes precedentes, o poder dos oligarcas estava bem estabelecido quando Zelenskyy foi eleito – o tema da corrupção foi um dos principais da sua campanha. Em novembro de 2018, uma investigação no quadro da Iniciativa Europeia Anticorrupção[29] indicava que “no estado em que se encontra o desenvolvimento das instituições ucranianas, não é surpresa o facto de a riqueza nacional estar concentrada nas mãos de um pequeno número de indivíduos que controlam os media e exercem uma influência desproporcional no parlamento”. Em maio de 2021, cerca de dois anos depois da eleição, Zelenskyy recebeu em Kiev, Antony Blinken. Dessa visita, ficou o registo das declarações do secretário de estado norte-americano: “há interesses poderosos alinhados contra as reformas, contra os esforços anticorrupção… esses interesses incluem forças externas, como a Rússia, mas também forças internas, como os oligarcas e outros indivíduos poderosos que prosseguem apenas os seus interesses[30]. Perante as críticas ao atraso das medidas contra a corrupção, Dmytro Kuleba, ministro dos negócios estrangeiros da Ucrânia, disse: “este país está a mover-se na direção certa. E os que reclamam para que andemos mais depressa estão convidados a juntar-se a nós e a ajudar”. Um relatório publicado em Outubro de 2021 pela International Bar Association (IBA, a associação global dos advogados) confirmava essa “direção certa”[31]. 

O próprio Zelenskyy foi salpicado com suspeitas. Primeiro com a atribuição de uma “relação ambígua” com Ihor Kolomoiskyy, um dos maiores oligarcas[32]. Depois, com a suspeita de ter tido participação em sociedades offshore, juntamente com os seus colegas de profissão, ainda no tempo da atividade televisiva [33]. Na origem destas suspeitas está a denúncia feita durante a campanha eleitoral pelo deputado Volodomyr Ariev, do grupo de Petro Poroshenko, adversário político derrotado por Zelenskyy, e publicada por uma agência de notícias russa [34]. Em outubro de 2019, o nome de Zelenskyy foi referenciado nos “Pandora Papers” como detentor de uma sociedade offshore, mas a informação é de 2008 [35] e não houve evidência de os negócios privados de Zelenskyy, na altura comediante e produtor, tivessem algo de ilegal. O certo é que, entre a eleição de Zelensky e o início da invasão pela Rússia, os oligarcas não tiveram a sua vida facilitada e a Ucrânia reforçou o seu arsenal legislativo e judicial contra a corrupção [36]. O combate à corrupção era, de resto, condição necessária para o acesso ao pacote de 5 mil milhões de USD do FMI. Esse combate deveria continuar a ser travado a todos os níveis, desde as oligarquias ao pequeno e médio suborno. Para criar uma cultura anti-corrupção, foi distribuído na Ucrânia um manual, elaborado pela ONG Juntos Contra a Corrupção, com o apoio do Institute for War & Peace Reporting [37]. A alta corrupção, o mundo dos oligarcas, não é problema que se resolva com pedagogia.  

Tal como Zelenskyy, também o presidente Joe Biden foi acusado de ligações suspeitas, na China e na Ucrânia. As acusações partiram do seu opositor Donald Trump e de colaboradores diretos seus. O padrão de denúncia como arma de campanha eleitoral é típico, porque o efeito da suspeita produz-se mesmo que não tenha fundamento [38]. 

A opção inequívoca pela democracia, o combate à corrupção e a ambição de se juntar à união europeia foram as razões próximas da iniciativa militar de Vladimir Putin[39]. Quando percebeu que Zelenskyy estava a conduzir o país na direção oposta ao sistema autocrático, oligárquico e cleptocrático de matriz russa, Putin agiu. Antes que a Ucrânia estivesse sob proteção da NATO. 

Tem sido atribuído a Putin um sonho alucinado ou paranoico de restauração da Rússia imperial. A meu ver, não é um sonho nem paranoia. Apesar dos palácios e da opulência de que Putin se rodeia, o seu papel é o de cabeça de uma gigantesca organização criminosa criada e estruturada para desviar e roubar os recursos naturais dos países, beneficiando do suborno, da violência militar e militarizada, e, lamentavelmente, da complacência do chamado Ocidente. Putin pode ser presidente, encenar eleições, ter acesso à diplomacia e às organizações internacionais, ter um exército e recursos quase infinitos à sua disposição. Mas não passa de um chefe de quadrilha. Pode fazer de Al Capone um menino do coro, mas não deixa de ser um Al Capone. O seu regime há muito que deixou de ser uma capitalismo de estado – é um Estado-máfia num país em que a maioria das pessoas ainda vive no limiar da pobreza ou abaixo dele. Os rankings internacionais das economias estão errados, porque omitem ou desvalorizam os indicadores de dignidade humana. 

A questão ucraniana pode ser um turning point. Será? Com a calma que só a paz proporciona, tem-se especulado sobre como será a próxima guerra. Nuclear? Cibernética? Económica? Convencional? De guerrilha? De terror? Química? Biológica? Ambiental? Todos os cenários são assustadores e todos merecem atenção e preparação. Mas mais importante do que o tipo de guerra é saber que motivos, que valores, serão os nossos perante esse cenário. Até que ponto irá ceder o Ocidente para evitar a guerra, seja ela qual for?

Como assinalou Jonathan Holslag num artigo publicado em meados de 2021, “Os países da NATO dependem fortemente de fornecedores autoritários de bens de consumo e combustíveis. Permitem que esses concorrentes aufiram enormes excedentes comerciais que o seu sistema de capitalismo de estado transforma frequentemente numa arma contra as empresas ocidentais. Muitos países europeus ainda fecham os olhos a essa política de poder económico. Alguns perderam a confiança nos Estados Unidos e temem que o trumpismo ainda esteja muito vivo. E então assumem que é melhor andar com cuidado e competir com Estados autoritários sem ser muito explícito quanto à diferença em termos de valores. Esta postura é um fracasso. A atitude cautelosa na concorrência económica, diplomática e militar não pode funcionar se o tecido interno de valores não for restaurado” [40].   

Se as lúcidas palavras do professor da Universidade Livre de Bruxelas forem lidas e levadas a sério, deve deixar de fazer sentido continuar a negociar normalmente, de igual para igual, com autocratas e oligarcas. Deve deixar de fazer sentido dar aos oligarcas e aos autocratas os palcos internacionais respeitáveis, as plataformas de negociação e de transferências financeiras, o acesso livre aos mercados, etc.. O gás, petróleo, minério ou cereal pode parecer mais barato (porque é roubado aos cidadãos dos países de origem), mas o preço real para a Europa e para a humanidade no seu todo é bem mais elevado. O mesmo se diga dos têxteis, semicondutores ou qualquer outro produto que venha de países com mão-de-obra escrava, infantil ou gestão ambiental predatória. Se a democracia quiser resistir a ser capturada pelo mundo dos oligarcas, dos interesses e das cumplicidades, terá que se libertar rapidamente das dependências e incorporar a democracia, a dignidade humana, a liberdade e a sustentabilidade em todos os negócios. 

As pessoas que anseiam pela democracia não são todas iguais. Muitas são tão pobres ou tão desiludidas que mal imaginam que vantagem a democracia lhes pode trazer. Outras são ricas ou suficientemente remediadas para continuar tranquilamente no seu sofá. Outras ainda… estão a morrer todos os dias algures na Ucrânia ou no Mediterrâneo só porque querem viver em paz, liberdade e dignidade.


Carlos Campos 


 [1] Entrevista de 8/11/2019 à BBC.  https://youtu.be/qYVsKoQXATY

[2] “Ninguém ficou a ganhar pelo facto de não me terem ouvido” – disse Gorbachov à agência Interfax no dia 27/12/2021. Gorbachov, recorde-se acreditava que a União Soviética deveria manter-se não como entidade autocrática centralista, mas como federação capaz de gerir a mudança para um autonomia crescente das várias repúblicas, de modo a evitar os conflitos étnicos e os separatismos. A entrevista está reproduzida no website da Fundação Gorbachov: https://www.gorby.ru/en/presscenter/news/show_30307/

[3] A invasão não seguiu o método convencional e territorial. Tropas russas descaracterizadas ocuparam o parlamento da Crimeia e outros pontos estratégicos e provocaram um golpe de estado que instalou um governo favorável que declarou a independência (da região da Crimeia e da “cidade federal” de Sebastopol) e organizou um “referendo” para justificar a anexação pela Federação Russa. O processo foi rápido: entre 27 de fevereiro e 16 de março. O “Tratado de Anexação” foi assinado a 18 de março.   

[4] Ver a transcrição da conferência de imprensa encenada em estúdio a 17 de abril de 2014, apenas com “jornalistas” russos, feita pelo jornal The Washington Posthttps://www.washingtonpost.com/world/transcript-vladimir-putins-april-17-qanda/2014/04/17/ff77b4a2-c635-11e3-8b9a-8e0977a24aeb_story.html

[5] Como o ataque à marinha da Ucrânia no estreito de Kerch,no dia 25 de novembro de 2018.Ver The Kerch Strait Incident, IISS (International Institute for strategic Studies), dezembro de 2018:   https://www.iiss.org/publications/strategic-comments/2018/the-kerch-strait-incident

[6] Sintomaticamente, a autorização da Duma (parlamento russo) para o envio de tropas para a Ucrânia foi aprovada antes do  “pedido de ajuda” dos separatistas. Ver a “notícia” da g1 (Globo, Brasil), Líderes separatistas de Luhansk e Donetsk pedem ajuda militar à Rússia para repelir forças ucranianas, 23/2/2022: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/02/23/lideres-separatistas-pedem-ajuda-militar-a-russia-para-repelir-forcas-ucranianas.ghtml

[7] Sobre estas regiões, ver Roman Goncharenko, Donetsk and Luhansk in Ukraine: A creeping process of occupation, DW, 23/2/2022: https://www.dw.com/en/donetsk-and-luhansk-in-ukraine-a-creeping-process-of-occupation/a-60878068 ; Mansur Mirovalev, Donetsk and Luhansk: What you should know about the ‘republics’, AlJazeera, 22/2/2022: https://www.aljazeera.com/news/2022/2/22/what-are-donetsk-and-luhansk-ukraines-separatist-statelets

[8] Ver a transcrição do discurso de Putin feita pela Blomberg - https://www.bloomberg.com/news/articles/2022-02-24/full-transcript-vladimir-putin-s-televised-address-to-russia-on-ukraine-feb-24 e a análise do discurso feita por Max Fisher, Putin’s Case for War, Annotated, The New York Times, 24/2/2022: https://www.nytimes.com/2022/02/24/world/europe/putin-ukraine-speech.html

[9] BBC, Ukraine crisis: Vladimir Putin address fact-checked, 22/2/2022: https://www.bbc.com/news/60477712

[10] Mário Soares, NATO: da defesa à ameaça, Visão 11 de setembro de 2008; http://www.fmsoares.pt/mario_soares/textos_ms/002/247.pdf

[11] Mário Soares, Putin: um homem perigoso, Visão, 14 de maio de 2014: https://visao.sapo.pt/atualidade/mundo/guerra-na-ucrania/2022-02-24-putin-um-homem-perigoso-como-mario-soares-via-o-lider-do-kremlin-em-2015/

[12] Emanuel Macron, declarações aos o encontro com o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg,28/11/2019: https://www.rferl.org/a/macron-says-russia-china-not-nato-allies-common-enemies---terrorism-is/30297520.html[

13] A imagem ficou para a história: https://www.wsj.com/articles/the-italian-artisans-behind-putins-huge-table-are-glowing-in-the-spotlight-11645122443 . A ordinarice de Putin está ao nível do tique de Sadam Hussein que mantinha o cotovelo encostado ao troco quando estendia a mão para cumprimentar um convidado, forçando-o a inclinar-se e a ficar assim na fotografia. Cada ditador tem os seus tiques. 

[14] NATO, NATO-Russia relations: the facts, 27/1/2022:    https://www.nato.int/cps/en/natohq/topics_111767.htm#c401

[15] Daria Kaleniuk e Olena Halushka, Why Ukraine’s Fight Agains Corruption Scares Russia, in Foreing Policy, 17/q2/2021; https://foreignpolicy.com/2021/12/17/ukraine-russia-corruption-putin-democracy-oligarchs/

[16] https://nabu.gov.ua/en

[17] A Transparency International continua a colocar a Ucrânia entre os países com pior notação: https://www.transparency.org/en/countries/ukraine

[18] https://gfintegrity.org/?country=ukraine

[19] https://financialtransparency.org/as-the-walls-of-the-old-ukraine-come-down-anonymous-companies-keep-popping-up/

[20] https://www.atlanticcouncil.org/blogs/ukrainealert/time-to-rethink-ukraines-fight-against-corruption/

[21] https://carnegieeurope.eu/2016/04/18/fighting-culture-of-corruption-in-ukraine-pub-63364

[22] Ver, p. ex., o caso de Ihor Kolomouskyy: https://www.icij.org/inside-icij/2021/03/u-s-sanctions-ukrainian-oligarch-featured-in-fincen-files-investigation/

[23] Vewja-se, por exemplo, o relatório publicado pelo U.S. Department of Justice em 2004: Alexander G. Kalman: Organizes Economic Crime and Corruption in Ukrainehttps://www.ojp.gov/pdffiles1/pr/204374.pdf

[24] Depois da crítica pública por parte dos EUA e da EU, o presidente Zelenskyy manifestou a sua insatisfação com o atraso na nomeação do presidente da Procuradoria Especializada Anti-Corrupção (SAP) e publicou a sua crítica no Twiter a 9 de outubro de 2021 com estas palavras “Não ouvi uma explicação plausível para o atraso da Comissão da Concorrência na eleição do novo presidente da SAP. Os membros da Comissão da Concorrência têm de cumprir adequadamente as suas obrigações. A eficácia das instituições amnticorrupção é uma prioridade para a Ucrânia”. https://twitter.com/ZelenskyyUa/status/1446808844940759047

[25] Ver, por exemplo, o artigo de Emil Filtembiorg e Stefan Weichert, Corruption in Ukraine: Is time running out for Zelenskyy to reform the country?, publicado a 25/7/2020 pela Euronews: https://www.euronews.com/my-europe/2020/07/25/corruption-in-ukraine-is-time-running-out-for-zelenskyy-to-reform-the-country

[26] https://www.oecd.org/investment/anti-bribery/corruption/acn/typology-of-corruption-crimes-in-the-energy-sector-in-ukraine.htm . A versão integral do relatório “Typology of Corruption Crimes in the Energy Sector in Ukraine” nunca chegou a ser disponibilizado publicamente… 

[27] Ver OCDE,  Anti-Corruption Review of The Energy Sector in Ukraine – Preliminary Draft Report, 2021,    https://www.oecd.org/countries/ukraine/OECD-Anti-Corruption-Review-of-the-Energy-Sector-in-Ukraine.pdf

[28] Essa “falta de atenção” está plasmada no “Relatório EspecialReducing Grand Corruption in Ukraine, do Tribunal de Contas Europeu, 23/9/2021, em que se assume que “a estratégia da União Europeia não se focou especificamente na luta contra a grande corrupção e o seu impacto foi difícil de monitorizar”:  https://www.eca.europa.eu/Lists/ECADocuments/SR21_23/SR_fight-against-grand-corruption-in-Ukraine_EN.pdf

[29] John Lough e Vladimir Dubrovskiy, Are Ukraine’s Anti-corruption Reforms Working?, Chatam House, novembro de 2018:  https://www.chathamhouse.org/sites/default/files/publications/research/2018-11-19-ukraine-anti-corruption-reforms-lough-dubrovskiy.pdf

[30] Declarações registadas por Martin Gak, da Deutsche Welle (DW): Ukraine: Anti-corruption fight 'moving in the right direction', 14/5/2021, https://www.dw.com/en/ukraine-anti-corruption-fight-moving-in-the-right-direction/a-57525129

[31] Lana Sinichkina e Volodomyr Svintsitskyi, Anti-corruption trends in Ukraine, 29/10/2021, https://www.ibanet.org/ukraine-anti-corruption-trends

[32] Sobre o caso, ver o artigo de Roman Olearchyk, correspondente do Financial Times em Kyiv, de 25/3/2021: https://www.ft.com/content/617dd29d-fba8-4404-988b-4ada37d4b45a

[33] Ver o eco da suspeita no artigo de Luke Harding, Revealed: ‘anti-oligarch’ Ukrainian president’s offshore connections, no The Guardian, 3/10/2021, https://www.theguardian.com/news/2021/oct/03/revealed-anti-oligarch-ukrainian-president-offshore-connections-volodymyr-zelenskiy

[34] Interfax, 4/3/2019 e da agência Interfax: https://en.interfax.com.ua/news/general/570044.html

[35] ICIJ – Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, Pandora Papershttps://offshoreleaks.icij.org/nodes/240371396

[36] Ver a síntese de Valentyn Gvozdiy (GOLAW), Anti-corruption regulation in Ukraine in 2022:  https://www.lexology.com/library/detail.aspx?g=7af6b977-fee8-4342-be08-5d71f8670122

[37] O manual foi publicado em março de 2020,apenas em língua ucraniana: https://iwpr.net/sites/default/files/download/publication/Ukrainian%20Handbook%20Top%2020%20Local%20Corruption%20Schemes.pdf

[38] Sobre o assunto, ver os resumos da BBC https://www.bbc.com/news/world-54553132 e do jornal USA Today https://eu.usatoday.com/story/news/factcheck/2020/10/21/fact-check-joe-biden-leveraged-ukraine-aid-oust-corrupt-prosecutor/5991434002/ m bem como o resumo da Wikipedia https://en.wikipedia.org/wiki/Biden–Ukraine_conspiracy_theory 

[39] Ver as declarações da jornalista ucraniana Nataliya Gumenyuk, entrevistada por Isaac Chotiner, What Makes Putin fear Ukraine?, The New Yourker, 21/1/2022: https://www.newyorker.com/news/q-and-a/what-makes-putin-fear-ukraine

[40] Jonathan Holslag, Nato's biggest enemy hides within, EUobserver, 14/6/2021: https://euobserver.com/opinion/152121


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