01 Nov
01Nov

Sob a pala da ténue diferença entre "negociação de créditos" e "cobrança", a economia portuguesa continua a ser terreno fértil para agências de cobranças. Para parecerem legais, as empresas do setor retiraram a palavra "negociação" dos seus websites e folhetos. A semântica promocional dessa atividade inclui expressões como "actuação na resolução amigável" ou "garantimos a satisfação de todas as partes no processo de recuperação dos valores em mora, tanto para o credor como para o devedor, de acordo com a estratégia definida" (citações reais, escolhidas ao acaso). Na prática, é inevitável que se ocupem de negociação. Não usam a palavra, mas dizem-no abertamente: "Os nossos serviços apostam na prevenção e por isso disponibilizamos todo o circuito de cobrança extrajudicial". A semântica refinada para passar no crivo do critério de interpretação convive com a promessa de eficácia. Uma das empresas do "ramo" faz questão de documentar as suas competências de "recuperação de bens" - com um sortido de fotografias de arrombamento. Outra vai ao ponto de incluir no seu website “conselhos” para os devedores. É o grau zero da ética: as agências de cobranças, pagas pelos credores, a fazerem-se amigas e conselheiras dos devedores. É o vício da usurpação: já se se usurpam funções de advogados e solicitadores, porque não simular que são tão amigos dos devedores como as associações de consumidores? Entre as práticas mais correntes, está a perseguição dos devedores com cartas, “notificações”, telefonemas intrusivos (entre o melífluo e o arrogante), sms, emails. A publicidade destas agências bem pode tentar dar uma aparência respeitável e útil a isto. Mas estas práticas, que são correntes entre as maiores agências do ramo, são trabalho sujo. Assédio. 

As agências de cobranças lutam com persistência por ocupar um lugar na normalidade - e estão a conseguir. Podem ter deixado o fraque e a contratação de indivíduos com formação humana inversamente proporcional à compleição física. Mas o serviço que oferecem e prestam continua a ser ilegal. Estão a chamar a si uma atividade legalmente reservada a advogados e solicitadores, a coberto de uma certa "interpretação" da lei. Basta ler as suas mensagens, "notificações" e "cartas de interpelação" para confirmar como se oferecem impunemente para combinar, conceder e aplicar "planos de pagamento", "condições especiais", etc. Um exemplo real de uma dessas mensagens: "existe a possibilidade de um plano de pagamentos de acordo com a sua real disponibilidade, assim, poderá contactar-nos de 2ª a 6ª feira entre o horário das 9h30 e as 18h30, através do telefone ... ou … email ". Que é isto senão um convite à negociação? 

A procuradoria ilícita não pode justificar-se invocando a liberdade económica, a menos que se tenha desta um conceito de impunidade e selvajaria. Não é por corporativismo ou protecionismo que algumas atividades têm determinações de atos próprios - é porque essas atividades envolvem uma delicadeza especial de proteção de direitos fundamentais das pessoas e porque exigem uma deontologia própria que faz com que só possam ser exercidas por profissionais qualificados e sujeitos a uma jurisdição disciplinar implacável

As cobranças propriamente ditas não são ato próprio de advogados. Para isso as empresas devem ter os seus próprios serviços, ou podem recorrer a serviços bancários, ao factoring, a modalidades legais de cedência de créditos, etc.. Se a necessidade de um credor é apenas a cobrança, não precisam de agências de cobranças. Só se recorre a estas quando há dificuldade, litígio e ou necessidade de negociação. Permitir que, a coberto do outsourcing das cobranças, proliferem as agências que usurpam funções de advogados e solicitadores é o mesmo que permitir clínicas de curandeiros e curiosos para usurpar as funções de médicos e enfermeiros, ou gabinetes de habilidosos para usurpar funções de engenheiros e arquitetos. 

Ao contrário do diz a publicidade de autoelogio, as agências de cobranças em nada contribuem para a pontualidade dos pagamentos ou para a eficiência e desempenho da economia nacional. É o tipo de atividade que singra em economias atrasadas e cheias de "esquemas". Se todos os credores recorressem exclusivamente aos meios legais e aos profissionais qualificados, haveria menos atrasos nos pagamentos. 

Exceção feita às iniciativas das ordens profissionais, o combate à procuradoria ilícita não tem sido encarado com o vigor necessário. São de ponderar medidas como as seguintes: 

  • Clarificação dos conceitos de "cobrança" e "negociação para cobrança", para se acabar de vez com a nuance semântica que tem permitido a impunidade;
  • O recurso a agências de cobranças por parte de empresas de utilities, telecomunicações, produtos financeiros ou outras é uma falta grave de conformidade legal e ética pelo deveriam ser punidas como mandantes ou, no mínimo, como cúmplices do crime de procuradoria ilícita;
  • Penalização da insistência no contacto com o devedor, depois deste indicar advogado ou de informar que contestou ou vai contestar a dívida;
  • Obrigação de apresentação de prova dos poderes de conferidos pelo credor;
  • Estipulação legal expressa indicando que as mensagens das agências de cobranças não constituem notificação ou sequer interpelação;
  • Estabelecimento de obrigações específicas relativas a bases de dados:
  • Identificação obrigatória do cliente e da pessoa em concreto que forneceu os dados à agência;
  • Informação obrigatória do devedor (por escrito) sobre todos os dados que constam da base de dados, incluindo as fontes de informação;
  • Comprovação da destruição dos dados logo que a dívida é paga ou objeto de acordo;
  • Fiscalização das bases de dados de agências de cobranças, paga por uma taxa anual de fiscalização.
  • Formação especializada e agilização de procedimentos na prevenção e repressão da procuradoria ilícita pelas autoridades policiais e judiciárias.

 Nenhum credor é obrigado a contratar advogado ou solicitador para tratar das suas cobranças. O credor pode tratar desse seu assunto e até pode recorrer a terceiros para gerir as cobranças. Mas o envolvimento de terceiros em tudo o que não seja a cobrança no seu sentido literal e estrito, é procuradoria ilícita. Quem precisa de um profissional para negociar e obter uma cobrança, por via extrajudicial ou judicial, só tem de recorrer a um advogado ou solicitador. Tal como para submeter um projeto de arquitetura necessita de recorrer a um arquiteto. Não é aceitável que as agências de cobranças cuja constituição e registo foram aceites no pressuposto de se limitarem às cobranças, extravasem para atividades que são atos próprios de profissionais específicos. 

Os serviços e atos dos advogados e solicitadores podem ser prestados por profissionais independentes ou por sociedades exclusivamente formadas por eles. Isto significa que a função do advogado ou solicitador não pode diluir-se numa forma ou organização qualquer. O esquema da agência que tem um advogado contratado para fazer a figura de “responsável” é inadmissível. Ou atua como responsável direto, ao abrigo de procuração do credor e sujeito a jurisdição deontológica da respetiva ordem, ou é apenas mais uma peça do esquema da procuradoria ilícita (unauthorized practice of law). 

O problema da procuradoria ilícita tem sido colocado a propósito das “sociedades multidisciplinares”, e até a propósito da oferta de serviços on line. A questão dos atos próprios deve ser imune às formas, formatos e meios de comunicação. O que é necessário garantir é que os atos próprios de advogados e solicitadores sejam efetivamente praticados por profissionais devidamente identificados, expressamente mandatados e sujeitos à respetiva jurisdição deontológica. A cada ato próprio de uma profissão deve corresponder sempre a identificação do profissional que o praticou. Figuras como a do "advogado responsável" que apenas "supervisiona" ou assina de cruz atos de outras pessoas são de rejeitar porque não passam de cortinas para encobrir a usurpação. A impunidade da procuradoria ilícita é uma das vertentes da descaraterização da justiça. Em vez de se investir nos tribunais e nos magistrados independentes, criam-se "alternativas". Em vez de advogados e solicitadores, criam-se "representantes", "gestores" e "consultores". Somos o país dos "especialistas", dos chicos-experts, das minutas e do copy/paste à pressa. Em vez de se contratar um advogado ou solicitador, paga-se a uma empresa especialista em spam/scam persecutório. As vítimas da usurpação não são apenas os profissionais cujas funções são usurpadas, nem os devedores assediados. São sobretudo os destinatários desses serviços, os credores que compram gato por lebre, e a sociedade em geral

Com legisladores hesitantes ou demasiado comprometidos, com agentes económicos pouco lúcidos e competentes, com consumidores menos empenhados na cidadania, o combate à procuradoria ilícita pode ser uma batalha perdida. Cuidado! 


Carlos da Silva Campos

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