Cada manifestação é encarada como exercício da liberdade de expressão. Qualquer ideia em contrário tende a ser vista como perigosa, securitária ou antidemocrática. Mas será mesmo assim?
Quem viveu na época em que um simples “ajuntamento” podia ser considerado como ameaça à “ordem pública”, dificilmente aceita a intervenção policial em manifestações. Nem sempre é nítida a diferença entre a presença do “dispositivo policial” e a intervenção. Dos manifestantes, espera-se ruído, coragem, irreverência e todo o tipo de expressões de protesto. Dos agentes policiais exige-se aprumo, calma gélida e proporcionalidade na intervenção, acima de qualquer dúvida. Há muito que as manifestações se têm vindo a tornar facilmente infiltráveis por intervenientes que aproveitam a motivação dos manifestantes para outros fins, alheios a essa motivação. Nos regimes não democráticos, os manifestantes sentiam a necessidade de se preparar contra as técnicas policiais. Nos regimes democráticos, os organizadores de manifestações que não queiram ser instrumentalizados necessitam de se preparar contra os infiltrados e provocadores profissionais.
O episódio da invasão do Capitólio (6/1/2021), pelo caráter simbólico do edifício, pela cobertura mediática e, sobretudo, pelo espalhafato selvagem dos atores e figurantes, tem sido considerado como símbolo da “fragilidade da democracia”. A quase ausência de proteção policial foi duramente criticada, mas era de esperar e exigir que o edifício-símbolo da democracia tivesse uma guarda armada visível e dissuasora? Se essa guarda existisse e se tivesse enfrentado os manifestantes com proporcionalidade, o tema de conversa seria hoje o da repressão “excessiva” e “desproporcional”. Ou seja, seria considerada sinal de “fragilidade da democracia”, mas pelo motivo oposto.
O problema da democracia não se circunscreve aos que instrumentalizam a liberdade de expressão para fins alheios à democracia. Cada vez mais se assiste a manifestações de protesto largamente participadas por pessoas que estão “cansadas da democracia”. Porque não têm as vantagens ou privilégios que já tiveram, que pensaram que iam ter ou que acham que deviam ter. A eleição de Trump não se deveu a um defeito do sistema eleitoral. Se o conceito de democracia e liberdade individual não tivesse mudado tanto na consciência dos americanos, nunca teriam eleito uma figura como Trump. O episódio do Capitólio começou no dia em que Trump, cujo discurso agradou aos frustrados e cansados da democracia, conseguiu a eleição.
A degradação ou perversão dos conceitos de liberdade e democracia não é um fenómeno exclusivamente americano. Se a Europa ocidental não chegou a um grau tão profundo de degradação, isso deve-se a ter uma história mais longa e mais sofrida para observar. A memória histórica é o melhor antídoto dos cidadãos e das sociedades contra a barbárie.
Atribui-se frequentemente a Edmund Burke (1729-1797) a frase “Os que não conseguem lembrar-se do passado estão condenados a repeti-lo”. O que Burke efetivamente escreveu foi “nunca olharão para a posteridade as pessoas que nunca olharam para os seus antepassados” [1]. O verdadeiro autor da frase é Jorge Santayana (1863-1952), filósofo e poeta nascido em Espanha e educado nos EUA, a quem ficámos a dever estas palavras: “quando a experiência não é retida, como entre os selvagens, a infância é perpétua. Os que não conseguem lembrar-se do passado estão condenados a repeti-lo. No primeiro estágio da vida, a mente é frívola e facilmente distraída; perde o progresso ao falhar na continuidade e na persistência. Esta é a condição das crianças e dos bárbaros, nos quais o instinto nada aprendeu com a experiência” [2].
O alerta para os riscos da falta de memória histórica já tinha sido dado na antiguidade por um dos seus mais notáveis historiadores – Políbio (203-120 aC). As palavras seguintes são quase uma antevisão da eleição de Trump:
“Enquanto estiverem vivos alguns dos que experimentaram os males do domínio oligárquico, eles estarão satisfeitos com a forma atual de governo e darão um alto valor à igualdade e à liberdade de expressão. Mas quando surge uma nova geração e a democracia cai nas mãos dos netos dos seus fundadores, eles estão tão habituados à liberdade e à igualdade que não lhes atribuem valor e começam a almejar a preeminência; e são principalmente os de grande fortuna que caem nesse erro. Então, quando eles começam a cobiçar o poder e não podem alcançá-lo por si mesmos ou por suas próprias boas qualidades, eles arruínam as suas propriedades, tentando e corrompendo o povo de todas as maneiras possíveis. E, portanto, quando por essa sede tola de popularidade eles criaram entre as massas um apetite por ofertas e o hábito de os receber, a democracia, por sua vez, é abolida e transforma-se em uma regra de força e violência. As pessoas, habituadas a alimentar-se à custa dos outros e a depender da propriedade alheia para a sua subsistência, logo que encontrem um líder que seja empreendedor, mas que esteja excluído pelo sistema devido à sua penúria, optam pela regra da violência; e então unem suas forças para massacrar, banir e saquear, até que degenerem novamente em perfeitos selvagens e encontrem mais uma vez um mestre e monarca” [3].
A “tese” da falta de memória histórica não se aplica a pessoas como Vladimir Putin, Xi Jinping, a dinastia Kim ou Viktor Orban. Eles não são ignorantes nem se converteram à ditadura, são ditadores com denominação de origem e pedigree. A falta de memória histórica a que nos referimos afeta as gerações que não viveram a luta pela igualdade, pelas liberdades e pela democracia e que, por não terem tido a educação suficiente, têm uma ideia distorcida do que essas “coisas” são. Só a falta de memória histórica e de educação explica que as pessoas identifiquem a liberdade de expressão com o desejo de supremacia da opinião própria, a liberdade com a ideia de recusa da autoridade democrática. No cerne deste modo de pensar, a única fonte de “legitimidade” da liberdade individual é a vontade própria. Deve ser assim porque eu quero. Se eu quero, é porque é justo. Se eu entendo que é verdade, é porque é verdade. A perversão da ideia de liberdade e democracia faz de cada individuo um ditadorzinho. Para conquistar a sua adesão, não é preciso mais do que um discurso simples e direto que fale das coisas simples e que estimule os sentimentos primários das pessoas insatisfeitas. Contra “o sistema”.
Nas sociedades do ruído, em que abundam as sobreposições de meios de comunicação, assiste-se, de resto, a uma simplificação geral. Quanto mais simples e direta for a argumentação, mais fácil é “passar a mensagem”. O dever de verificar, de comprovar, de fundamentar, passa para segundo plano porque as pessoas não têm paciência para ouvir mais do que algumas frases, para ler mais do que uma legenda ou parágrafo, e muito menos para averiguar qual é a fonte, e quem é o autor, da “notícia”. O cidadão tem pressa e não quer aborrecer-se com grandes explicações: usará apenas o lhe interessa, o que ajuda a defender a sua opinião. O resto, ou é ignorado ou rotulado de “falso”. A liberdade para escolher foi substituída pela liberdade de optar sem escolher. Porque cada um opta como quer. Porque sim.
Há décadas que a Europa assiste aos avanços (e também recuos, felizmente) dos partidos populistas. Nos EUA, o populismo contaminou os partidos tradicionais, com especial visibilidade no partido republicano. Essa visibilidade levou a reconhecer os sinais de um novo tipo de oclocracia, recuperando o termo da antiguidade grega [4]. Federico Fubini, jornalista do Corriere della Sera (Itália), notou a tendência para a simplificação e afunilamento dos programas dos partidos, da imprensa e das redes sociais: “A oclocracia do século XXI tende a ir além do populismo clássico para envolver faixas mais amplas da vida pública. Três sintomas desse processo destacam-se hoje. Primeiro, os partidos políticos tradicionais foram esvaziados, com programas políticos mais vagos e caminhos mais estreitos para o surgimento de novos líderes.[…]. Um segundo grande sintoma da decadência democrática é a degradação da imprensa. A democracia sofre quando os meios de comunicação social se tornam partidários, polarizados e superficiais (usando o sensacionalismo e o medo em busca de audiências). Quando uma sociedade é politicamente polarizada, os editores veem uma oportunidade comercial na instigação de segmentos da população com ideias semelhantes. Atiçar as chamas passou a ser um modelo de negócio. […]. Um terceiro sintoma é o aumento da conversa nas redes sociais como influência dominante nas opiniões e decisões dos políticos. Como jornalista, conheço pessoalmente líderes proeminentes que são viciados em Twitter e passam nele boa parte do seu tempo. O Twitter tornou-se a sua realidade, enquanto os eleitores continuam a viver no mundo real. Um sistema político com partidos vazios tem maior probabilidade de sucumbir a tais pressões. À medida que o sistema falha cada vez mais em lidar com questões de longo prazo, a confiança nesse sistema desgasta-se e a opinião pública torna-se cada vez mais volátil, resultando numa espiral familiar de ruído, ineficácia, imprensa negligente, retórica agressiva e programas políticos de vistas curtas” [5].
As tendências oclocráticas do século XXI vêm de longe. Num artigo publicado em 2015, Jasmin Halsanović, professor assistente da Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Sarajevo, sugeriu que a degradação das democracias começou com tecnocracia e “racionalidade neoliberal” que reduziu quase tudo ao cálculo económico e limitou a participação democrática aos atos eleitorais. O “povo” que deveria estar na base da democracia está cada vez mais cativo na sua apatia política, focado em coisas mais irrelevantes e vulnerável à influência de demagogos. A mobilização deste “povo” não será um exercício de vitalidade democrática mas o suporte de uma nova forma de totalitarismo. Em discurso direto:
“Os desafios que surgem pela falta de democracia e os abusos do papel da sociedade civil não só estão intimamente ligados, como derivam um do outro. Com a chegada da pós-modernidade, a democracia é reduzida e limitada pela tecnocracia, burocracia e racionalidade neoliberal a favor de uma lógica económica dura e calculista. Essa ordem, na qual todas as dimensões da vida contemporânea são objeto de racionalidade económica, é inquestionavelmente totalitário por si só. O domínio total dos interesses económicos sobre os interesses do povo é cada vez mais evidente. Por isso, o papel democrático das pessoas foi basicamente reduzido ao processo eleitoral, no qual dá deixaram de ser capazes de discutir e tomar decisões políticas importantes de acordo com o interesse comum. Numa ordem onde as democracias liberais não conseguiram resolver alguns problemas da era pós-moderna, esses problemas foram agora atirados para os ombros da sociedade civil cujo papel é contribuir para a democracia. Mas apesar do enorme papel e responsabilidade que estão agora nas suas mãos, a sociedade civil substitui frequentemente a atividade política das pessoas pela passividade, pelo lazer e pela apatia política, usando o poder dos mass media para criar o público onde não existe, focando a atenção das pessoas noutras coisas irrelevantes. Por outro lado, existe o desafio em que a vontade do povo é o reflexo de uma certa atmosfera política, confirmando-a ou negando-a, enquanto a sociedade é entendida como uma ferramenta que reflete a vontade do povo. Neste ponto de vista, o papel da sociedade civil é devolver o papel democrático ao povo, enquanto por outro lado, pode agir de forma extremamente antidemocrática, com práticas democráticas falhadas. Por causa da massa que compõe a sociedade civil, ela não deve, portanto, ser vista como um exemplo completo, limpo, inocente e perfeito de democracia, mas um reflexo antidemocrático em que a sociedade civil já não é esse movimento social simpático, mas o oposto, capturado pela influência de demagogos. A sociedade civil pode agora ser estreitamente relacionada com a oclocracia, o domínio direto da turba ou massa, onde os problemas acumulados da sociedade com os quais ninguém se importa podem ir em duas direções: ou podem estar diretamente assumidos pela vontade das massas, ou, através da vontade dos populistas, tornar-se também a sua vontade. A falta de democracia agora não só leva a elementos de totalitarismo como também proporciona espaço para demagogos e populistas se mascararem como promotores da democracia, realizando desta forma práticas antidemocráticas, oclocráticas. A sociedade civil, portanto, também pode limitar a democracia por causa de suas falhas, por meio de práticas oclocráticas que conduzem à tirania da maioria como mais um tipo de totalitarismo” [6].
Os políticos populistas mascaram-se não só de “promotores da democracia” mas de defensores das pessoas que estão desiludidas com a democracia. Eles procuram ganhar popularidade com frases bombásticas e primárias, mas mais próximas do cidadão comum. Desse modo podem contrastar com os “políticos do sistema”, os que se deixaram afastar dos cidadãos. Como assinala o filósofo Jesús Padilla Gálvez, da Universidade de Colónia, "a democracia representativa entrou numa crise de legitimidade. Vários fatores conduziram a esta crise. Um fator é a conduta alo autista da classe política, e dos seus respetivos partidos políticos. Registou-se uma alienação crescente entre os políticos e o público. A legitimidade que os políticos ganharam através das eleições é desafiada pela distância emocional e frieza que mostram quando estão próximos dos cidadãos” [7].
Gálvez assinala algumas consequências das práticas oclocráticas, entre as quais o contraste entre a riqueza pessoal obtida na economia paralela e as falhas nos serviços públicos [8]. Para ter mais benefícios pessoais ao abrigo de uma carga fiscal opressora, o cidadão cede à tentação de fugir aos impostos e alinha aos esquemas de “ser pago por fora”. A última coisa que esse cidadão vai desejar é que os políticos eleitos alterem o estado de coisas e obriguem todos a pagar impostos. Ricos e pobres são cúmplices implícitos neste sentimento. A ausência de programa político sério por parte dos partidos populistas e dos movimentos oclocráticos está longe de ser um handicap [9].
Na realidade, entre eleitores e eleitos ninguém está realmente interessado numa política coerente que acabe com a economia paralela, a evasão fiscal ou até mesmo a corrupção. O que interessa é lucrar enquanto a agitação perdura. O que interessa é culpabilizar alguns alvos, os culpados de tudo, para que os que fazem parte da turba possam fazer o que lhes apetecer ou esperar por uma benesse qualquer. As multidões que sustentam os populismos do século XXI dão mostras de serem mais crédulas que as de outras épocas. Em vez de seguirem um político por ser benfeitor, vão na conversa de quem promete fazer mal a alguém. Os imigrantes, os estrangeiros, os ciganos, e por aí fora…
Vimos acima como a imprensa e as redes sociais contribuem para as tendências oclocráticas. A imprensa é vítima de um empobrecimento. Quanto mais se repete uma notícia, mais pobre fica o seu autor e até o seu editor. Há mais recórteres que repórteres. Confrontados com uma turba que perdeu ou não chegou sequer a ter hábitos de leitura, os mass media sucumbem à guerra das audiências e cedem frequentemente à banalização e ao sensacionalismo.
A este propósito as palavras de António Barreto: “É simplesmente desmoralizante. Ver e ouvir os serviços de notícias das três ou quatro estações de televisão é pena capital. A banalidade reina. O lugar-comum impera. A linguagem é automática. A preguiça é virtude. O tosco é arte. A brutalidade passa por emoção. A vulgaridade é sinal de verdade. A boçalidade é prova do que é genuíno. A submissão ao poder e aos partidos é democracia. A falta de cultura e de inteligência é isenção profissional. […] A concepção do pluralismo é de uma total indigência: se uma notícia for comentada por cinco ou seis representantes dos partidos, há pluralismo! O mesmo pode repetir-se três ou quatro vezes no mesmo serviço de notícias! É o pluralismo dos papagaios no seu melhor! Uma consolação: nisto, governos e partidos parecem-se uns com os outros. Como os canais de televisão” [10].
É injusto desconsiderar a qualidade do jornalismo e da informação que ainda se produz. A perda de audiência é, no entanto, inexorável, e com ela a perda de influência na sociedade e na capacidade de decisão das pessoas. A maior parte das pessoas perde nas redes sociais um tempo que nunca gastou com a imprensa “convencional” e o contributo dessas redes para a informação das pessoas é diminuto. Essa é aliás, a grande diferença entre ambas. Enquanto a imprensa produz informação para uma audiência que não tem, as redes sociais têm uma audiência com informação inexistente ou diminuta. Dos artigos, reportagens e notícias que os jornalistas produzem, a maior parte das pessoas só conhece a pequena parte que alguém copiou e partilhou numa rede social qualquer. Copia-se a headline, por vezes sem a compreender. Omite-se o contexto. A era da internet e das redes sociais fez surgir uma sociedade do ruído que praticamente afoga a comunicação social baseada na ética da verificação dos factos e da distinção (tanto quanto é possível) entre a informação objetiva e a opinião, publicidade ou propaganda. Tal como o afunilamento do ensino está a criar gerações de "novos ignorantes" vulneráveis aos chamamentos populistas e a toda a espécie de charlatanismo ( do chico-espertismo ao jato privado), o ciberespaço é fértil para a desinformação, a manipulação, as fake news e o cultivo do fanatismo e da intolerância. Em crise, a imprensa, cujo ofício incorpora a verificação dos factos a priori, teve que inventar o fact checking que náo é mais do que a verificação dos facros a posteriori para por a nu toda a espécie de fake news. Mas quem lê ou ouve os desmentidos?
De pouco vale culpar a imprensa ou as redes sociais, como de pouco vale culpar o que quer ou quem quer que seja. As raízes da degradação da democracia e da perversão da ideia de liberdade são fundas e envolvem as falhas da sociedade num dos aspetos que mais justificam a sua existência: a educação e a cultura. A oclocracia e a perversão não existiriam se a turba fosse uma multidão esclarecida e culta, em vez de uma multidão em que ignorantes e ingénuos seguem lado a lado com oportunistas e selvagens. Sucede que a sociedade do ruído opera uma simplificação da cultura e reduz os bens culturais a "produtos". Vêm a propósito as constatações de Mario Vargas Llosa: "a publicidade e as modas que lançam e impõem os produtos culturais do nosso tempo são um sério obstáculo à criação de indivíduos independentes capazes de julgar por si mesmos o que é que mais lhes agrada, o que é que admiram, o que acha desagradável e enganador ou horripilante naqueles produtos" [11].
Ainda Vargas Llosa: "A cultura em que vivemos mergulhados não propicia, até mesmo desincentiva, esses denodados esforços que culminam em obras que exigem do leitor uma concentração intelectual quase tão intensa como a que os tornou possível. [...] Também não é por acaso que a crítica tenha quase desaparecido nos nossos meios de informação e se tenha refugiado nos conventos de clausura que são as Faculdades de Humanidades e, em especial, os Departamentos de Filologia cujos estudos são só acessíveis aos especialistas. É verdade que os jornais e as revistas mais sérios publicam ainda resenhas de livros, de exposições e concertos, mas alguém lê esses paladinos solitários que tentam pôr uma certa ordem hierárquica nessa selva promíscua em que se converteu a oferta cultural dos nossos dias? A verdade é que a crítica que na época dos nossos avós e bisavós desempenhava um papel central no mundo da cultura porque assessorava os cidadãos na difícil tarefa de julgar o que ouviam, viam e liam, hoje é uma espécie em extinção da qual ninguém faz caso, excepto quando também ela se converte em diversão e espectáculo. A literatura light, como o cinema light e a arte light, dá a impressão cómoda ao leitor e ao espectador de ser culto, revolucionário, moderno, e de estar na vanguarda com o mínimo de esforço intelectual. Deste modo, essa cultura que se pretende avançada e de ruptura, na verdade propaga o conformismo através das suas piores manifestações: a complacência e a auto-satisfação. [...] O vazio deixado pelo desaparecimento da crítica permitiu que, insensivelmente, a publicidade o tenha preenchido, convertendo-se esta nos nossos dias não só em parte constitutiva da vida cultural como no seu vector determinante" [12]
No contexto da pandemia COVID-19, Joseph Stiglitz, professor da Universidade de Columbia, aludiu deste modo à questão da educação: "Porque razão tantas pessoas, supostamente educadas, atuam tão irracionalmente contra o seu próprio interesse, contra a ciência, e contra as lições da história? Parte da resposta está no facto de o país, apesar de toda a sua riqueza, não estar tão bem educado como se poderia esperar, o que se reflete nas comparações entre países em matéria de avaliações de desempenho normalizadas. Em várilas regiões do país, incluindo algumas das que têm taxas de resistência à vacinação mais elevadas, o ensino da ciência é particularmente pobre, permitindo a politização de assuntos fundamentais como a evolução e as alterações climáticas, que em muitos casos foram excluídos dos curricula escolares" [13].
Se os curricula escolares excluem a ciência, a história e a cidadania não se pode esperar que os cidadãos tenham da democracia e das liberdades um conceito amadurecido pela memória da história. Só a ignorância pode explicar que em pleno século XXI ainda haja orgulho e gozo no hastear de bandeiras e nas tatuagens de símbolos nazis. Sem educação e sem ferramentas para questionar e pensar si próprias, as pessoas ficam à mercê dos políticos que dizem abertamente que as alterações climáticas são um embuste, que as vacinas são piores que as doenças ou até que a Constituição e a Bíblia suportam a supremacia branca. O populismo baseia-se na ignorância. Há algumas décadas atrás, o número de pessoas que desfilavam e se manifestavam na rua ou que subscreviam uma petição era considerado um indicador primário de razão. Hoje, percebe-se bem a diferença entre a multidão e a turba. Nunca foi tão fácil e tão evidente a manipulação de pessoas. O que se pensava só ser possível em países de pobres, analfabetos, dominados por clérigos mascarados de políticos, tornou-se recorrente em países que cumprem a "escolaridade obrigatória". A distância entre escolaridade e cultura é bem maior do que se supunha.
O afunilamento da "opinião" em ideias primárias como o individualismo, o nacionalismo e o protecionismo anda a par da sobrevalorização dos “valores” em sentido económico. Aplica-se bem a frase de Oscar Wilde: ""hoje em dia as pessoas sabem o preço de tudo, mas não sabem o valor de coisa alguma" [14]. Os dois conceitos estão confundidos, diz Vargas Llosa: "A distinção entre preço e valor eclipsou-se e as duas coisas são agora uma só, em que o primeiro absorveu e anulou o segundo. O que tem êxito e se vende é bom e o que fracassa e não conquista o público é mau. O único valor é o comercial. O desaparecimento da velha cultura implicu o desaparecimento do velho conceito de valor. O único valor existente é agora aquele que o mercado fixa" [15].
A chamada "opinião pública culta" tem uma ideia reduzida e redutora da qualidade e do desempenho das pessoas, das empresas e dos países, que se medem por indicadores econométricos como o rendimento, o PIB, o EBITDA, etc.. As ciências, as humanidades e as artes em geral são consideradas supérfluas, senão perigosas. Entre nós, o ensino da cidadania (uma necessidade evidente num país com défice de tradição participativa e democrática) deveria ter sido uma oportunidade para consolidar os valores essenciais associados aos direitos e deveres fundamentais, mas, infelizmente, a programação dos conteúdos foi tão inadequada e desastrada que acabou por criar anticorpos na sociedade. A "ideologia de género", injetada na disciplina de cidadania, é um exemplo de como se pode ter uma ideia distorcida e redutora dos princípios da liberdade e da não discriminação. O reverso destas tendências afuniladoras é a subvalorização, senão o desprezo, de valores e atividades como a família, a fruição da cultura, a solidariedade e a felicidade alheia, a sustentabilidade e a justiça entre gerações.
Escreveu António Bagão Félix: “Vivemos prenhes da nova ideologia do atualismo, que secundariza o tempo que está para além do dia seguinte. Erguemos o utilitarismo como a ética da conveniência e o egoísmo como a ética intergeracional. Convivemos com uma insidiosa métrica do valor da vida, através da qual ser velho é um problema e nascer é uma inconveniência. Continuamos, apesar das declarações proclamatórias, a ver a natureza como uma mera coisa instrumental a usar, abusar e a saquear. Exaltamos a exclusividade dos direitos e fragmentamos os correspondentes deveres. Esquecemos que a noção de direitos humanos é ilusória quando se separa o direito do dever. Enganamo-nos quando, entre o bem e o mal, criámos uma falsa e perigosa categoria ética, a da indiferença” [16].
É neste ambiente que se assiste à demonstração quase diária de uma ideia exaltada e distorcida dos direitos e liberdades individuais, para a qual são irrelevantes os direitos e liberdades dos outros, mesmo quando estes têm a proporção de prioridade pública. Nesta lógica individualista, o egoísmo gera egoísmo. Se o vizinho exerce a sua liberdade de expressão incomodando a vizinhança com a sua gritaria, os vizinhos podem achar-se no direito de fazer o mesmo. É a corrida para o fundo, a lógica oposta à do “imperativo categórico” de Kant [17] segundo o qual cada um só deve reconhecer um direito ou liberdade individual se todas as demais pessoas forem igualmente titulares do mesmo direito ou liberdade.
Os direitos e liberdades autolimitam-se ou não passam de pretextos de selvajaria. Isto é válido quer no plano das relações privadas, quer no plano das relações entre os indivíduos e o estado. Não se pode esperar que a autolimitação seja sempre automática. Se assim fosse, o estado não seria necessário e a anarquia seria a sociedade perfeita. A questão não é a de saber se os estados podem ou não limitar ou restringir direitos ou liberdades das pessoas. É, sim, a de saber para que finalidade o fazem e se o fazem de forma proporcional. O lançamento de um imposto é uma limitação do direito de propriedade, medida que não é boa nem má por natureza. Será legítima se a finalidade for o bem público, se a medida for proporcional e se for tomada por quem exercer esse poder com legitimação eleitoral. Será um confisco, um roubo, se assim não for. Uma restrição da liberdade de manifestação poderá ser legítima se for justificada por razões de segurança ou saúde pública. Será tirania se a razão for impedir um protesto contra o governo. Nenhuma pessoa gosta de ver a sua liberdade limitada por uma medida de intervenção ou restrição por parte do Estado. Mas nada existe de errado se a liberdade individual for limitada por razões de “interesse púbico” ou “ordem pública”. A questão não é a de saber que os direitos e liberdades individuais podem ou não ser limitados, mas a de assegurar que a invocação do “interesse público” é legítima (autoridade legitimada por eleição ou lei), válida (razão substancial) e proporcional (não excessiva). A análise pode não ser simples.
Como assinalou Carla Amado Gomes, "a salvaguarda da autonomia individual, da privacidade, da liberdade, como se preferir, deve procurar-se, mas não a qualquer custo. Nomeadamente, não a custo do sacrifício da própria ideia de vida social, que implica a defesa e realização do interesse coletivo, nas suas várias facetas. A dignidade do ser humano não pode traduzir-se numa exigência incessante de direitos sem quaisquer contrapartidas, sem responsabilidades sociais. A felicidade do indivíduo socialmente integrado tem um preço: a solidariedade, no sentido de assunção dos deveres que lhe advêm da sua integração social" [18].
A hiperbolização dos direitos e liberdades individuais é uma perversão grosseira da ordem jurídica baseada na liberdade, na igualdade e na democracia. As normas constitucionais sobre direitos fundamentais existem para os garantir face aos abusos dos estados e das pessoas, não para os descontextualizar nem para invalidar, impedir ou retardar medidas legítimas, necessárias e proporcionais para garantir a segurança e bem-estar das populações em situações de emergência, calamidade, pandemia, risco de acidente, de conflito ou de tumulto. Se a simplificação, a expressão redutora dos direitos fundamentais e o populismo vierem a infiltrar a função judicial, o Estado de Direito estará seriamente ameaçado.
Enquanto escrevo estas linhas, os noticiários acompanham uma manifestação contra as medidas de vacinação adotadas pelo governo do Canadá. O primeiro-ministro fez duras críticas aos organizadores e à manifestação, mas, pelo menos até ao momento, não foi tomada medida policial para dispersar a manifestação. As declarações do primeiro-ministro irritaram os manifestantes, que se afirmam decididos a continuar o protesto. Os objetivos inicialmente anunciados para a manifestação alargaram-se. Entretanto, a plataforma de crowdfunding que geria a operação de recolha de donativos para os manifestantes suspendeu os donativos e anunciou a sua devolução invocando “violação dos termos de serviço”. Alguns dos manifestantes desmobilizaram, mas a manifestação-ocupação persiste. Segundo a agência de notícias Reuters, “os manifestantes fecharam a baixa de Otava, a capital do Canadá, desde há oito dias, com alguns dos participantes hasteando bandeiras dos Confederados ou Nazis e alguns dizem que querem a dissolução do governo do Canadá. Para maior fúria dos residentes, a polícia de Otava tem permanecido inativa observando alguns manifestantes a partir janelas, a ameaçar repórteres e trabalhadores de saúde e a ofender minorias raciais. Toronto, a maior cidade do Canadá, e outras cidades enfrentaram perturbações no Sábado quando os protestos se espalharam a partir de Otava, aumentando os receios de confrontos com contramanifestantes” [19].
Pode uma manifestação contrariar medidas legislativas ou administrativas legítimas? Pode afetar o funcionamento normal das estradas e do centro de uma cidade? A única resposta democrática a estas perguntas é: claro que sim. Mas isso não significa que a manifestação possa substituir-se à legitimidade das instituições para legislar ou tomar medidas. Se alguma dessas medidas mudar por influência da manifestação, terá de ser segundo os procedimentos definidos. Por outro lado, a perturbação da circulação também tem limites, e as autoridades têm legitimidade para os impor. Dentro de alguns dias, poderemos saber pelos noticiários o desfecho desta manifestação, quer quanto aos resultados (se as autoridades do Canadá cedem na questão da exigência de vacinação [20]) quer quanto à evolução da manifestação: se desmobiliza naturalmente ou evolui para um episódio tipo Capitólio em que se conjuguem os três elementos da oclocracia definidos por Políbio (violência, violação da lei e turba). Entretanto, sabe-se de tentativas para replicar a manifestação nos EUA e na EU…
A relação entre capitalismo e democracia não é biunívoca, mas quanto mais imperfeita ou degradada for a democracia, mais selvagem será o capitalismo. Em vez de uma democracia virtual baseada unicamente no ritual periódico das eleições (com taxas de abstenção elevadas) e no distanciamento generalizado dos cidadãos relativamente aos temas políticos, potenciado por todas as distrações da “sociedade do ruído”, a realidade económica e social só tem a ganhar com o investimento na educação, na cultura, na cidadania, na transparência e na ética. É preciso que as pessoas conheçam o passado para poderem ser senhoras do seu futuro.
Vêm a propósito estas palavras de Ortega Y Gasset: "Quando alguém nos pergunta o que somos em política, ou, antecipando-se com a insolência que pertente ao estilo do mosso tempo, nos adscreve a uma, em vez de responder devemos perguntar o que pensa ele que é o homem, a natureza e a história, o que é a sociedade e o indivíduo,, a coletividade, o estado, o uso e o direito. A política apressa-se a apagar as luzes para que todos estes gatos sejam pardos" [21]. Esta apagar das luzes sobre a cultura pode passar despercebido na sociedade do ruído, a mesma que Gilles Lipovetski chamou "era do vazio" [22] e que Vargas Llosa chamou "civilização do espetáculo", é o terreno mais fértil para os populismos e a oclocracia.
As ameaças da oclocracia, a perversão das ideias de direitos e liberdades, são desafios reais. Ignorá-los é um esforço tão inútil como fugir de Bagdad para Samarra para evitar a morte [23]. A sociedade do ruído e da apatia morrerá mais tarde ou mais cedo. A verdadeira questão é que sociedade teremos para além dessa morte. Um capitalismo mais selvagem ou uma economia mais culta, saudável e sustentável?
[1] "People will not look forward to posterity, who never look backward to their ancestors". A frase pode ler-se no panfleto Reflections on the Revolution in France publicado em 1790. A Biblioteca Nacional de França disponibiliza um fac-simile da edição original:
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k111218p.r=.langEN#
[2] Jorge Santayana, The Life of Reason: The Phases of Human Progress (1905-1906), Liv. I. Traduzi a partir da versão disponibilizada pelo Projeto Gutemberg: https://www.gutenberg.org/files/15000/15000-h/15000-h.htm
[3] Políbio, Histórias, V. VI, 8, 4-9. Traduzi a partir da transcrição em inglês, disponibilizada pela Universidade de Chicago: https://penelope.uchicago.edu/Thayer/e/roman/texts/polybius/6*.html
[4] A oclocracia (ὀχλοκρατία) é o poder ou governo (κρατία) pela turba ou multidão (ὄχλος). Políbio terá sido o primeiro a usar o termo como versão corrompida da democracia. O historiador grego indicou os três elementos distintivos da oclocracia: a expressão violenta do orgulho (ὕβρεως), a contestação da lei (“παρανομίας”) e a força da multidão (ὄχλος). Os três elementos saltam à vista nos episódios posteriores à derrota de Trump.
[5] Federico Fubini, The Other Threat to Democracy, 2/2/2022, Project-Syndicate; traduzi a partir do artigo on line: https://www.project-syndicate.org/commentary/democratic-erosion-can-lead-to-mob-rule-by-federico-fubini-2022-02
[6] Jasmin Halsanović, Ochlocracy in the practices of civil society: a threat for democracy?, in Studia Juridica et Politica Jaurinensis, 2(2015) pp- 56-66; Fac. De Direito e Ciências Políticas da Univ. Széchenyi István, Gyor, Hungria. Traduzi a partir da versão disponibilizada on line: https://dfk-online.sze.hu/images/sjpj/2015/2/~%20SPJ%202015%202%20sz%C3%A1m%20T%206%20Jasmin%20HASANOVIC.pdf
[7] Jesús Padilla Gálvez, Democracy in Times of Ochlocracy, in Synthesis Philosophica, Vol. 32 No.1, 2017. Pag. 168; traduzi a partir da versão em língua inglesa disponibilizada on line: https://hrcak.srce.hr/file/280652
[9] Na campanha eleitoral para as eleições legislativas de janeiro de 2022, foram vários os políticos que chamaram a atenção para o facto de o programa do partido populista se resumir a 9 páginas. Esse facto não teve relevância nos resultados eleitorais.
[10] António Barreto, As Notícias na Televisão, Diário de Notícias, 25/9/2016. https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/antonio-barreto/as-noticias-na-televisao-5407534.html A versão integral é imperdível: “É simplesmente desmoralizante. Ver e ouvir os serviços de notícias das três ou quatro estações de televisão é pena capital. A banalidade reina. O lugar-comum impera. A linguagem é automática. A preguiça é virtude. O tosco é arte. A brutalidade passa por emoção. A vulgaridade é sinal de verdade. A boçalidade é prova do que é genuíno. A submissão ao poder e aos partidos é democracia. A falta de cultura e de inteligência é isenção profissional. Os serviços de notícias de uma hora ou hora e meia, às vezes duas, quase únicos no mundo, são assim porque não se pode gastar dinheiro, não se quer ou não sabe trabalhar na redacção, porque não há quem estude nem quem pense. Os alinhamentos são idênticos de canal para canal. Quem marca a agenda dos noticiários são os partidos, os ministros e os treinadores de futebol. Quem estabelece os horários são as conferências de imprensa, as inaugurações, as visitas de ministros e os jogadores de futebol. Os directos excitantes, sem matéria de excitação, são a jóia de qualquer serviço. Por tudo e nada, sai um directo. Figurão no aeroporto, comboio atrasado, treinador de futebol maldisposto, incêndio numa floresta, assassinato de criança e acidente com camião: sai um directo, com jornalista aprendiz a falar como se estivesse no meio da guerra civil, a fim de dar emoção e fazer humano. Jornalistas em directo gaguejam palavreado sobre qualquer assunto: importante e humano é o directo, não editado, não pensado, não trabalhado, inculto, mal dito, mal soletrado, mal organizado, inútil, vago e vazio, mas sempre dito de um só fôlego para dar emoção! Repetem-se quilómetros de filme e horas de conversa tosca sobre incêndios de florestas e futebol. É o reino da preguiça e da estupidez. É absoluto o desprezo por tudo quanto é estrangeiro, a não ser que haja muitos mortos e algum terrorismo pelo caminho. As questões políticas internacionais quase não existem ou são despejadas no fim. Outras, incluindo científicas e artísticas, são esquecidas. Quase não há comentadores isentos, ou especialistas competentes, mas há partidários fixos e políticos no activo, autarcas, deputados, o que for, incluindo políticos na reserva, políticos na espera e candidatos a qualquer coisa! Cultura? Será o ministro da dita. Ciência? Vai ser o secretário de Estado respectivo. Arte? Um director-geral chega. Repetem-se as cenas pungentes, com lágrima de mãe, choro de criança, esgares de pai e tremores de voz de toda a gente. Não há respeito pela privacidade. Não há decoro nem pudor. Tudo em nome da informação em directo. Tudo supostamente por uma informação humanizada, quando o que se faz é puramente selvagem e predador. Assassinatos de familiares, raptos de crianças e mulheres, infanticídios, uxoricídios e outros homicídios ocupam horas de serviços. A falta de critério profissional, inteligente e culto é proverbial. Qualquer tema importante, assunto de relevo ou notícia interessante pode ser interrompido por um treinador que fala, um jogador que chega, um futebolista que rosna ou um adepto que divaga. Procuram-se presidentes e ministros nos corredores dos palácios, à entrada de tascas, à saída de reuniões e à porta de inaugurações. Dá-se a palavra passivamente a tudo quanto parece ter poder, ministro de preferência, responsável partidário a seguir. Os partidos fazem as notícias, quase as lêem e comentam-nas. Um pequeno partido de menos de 10% comanda canais e serviços de notícias. A concepção do pluralismo é de uma total indigência: se uma notícia for comentada por cinco ou seis representantes dos partidos, há pluralismo! O mesmo pode repetir-se três ou quatro vezes no mesmo serviço de notícias! É o pluralismo dos papagaios no seu melhor! Uma consolação: nisto, governos e partidos parecem-se uns com os outros. Como os canais de televisão.”
[11] Mário Vargas Llosa, A Civilização do Espetáculo, Quetzal, 2012, pág. 25; tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra.
[12] Ibidem, pp. 34-35.
[13] Joseph E. Stiglitz, COVID-19 and human freedom, 9/9/2021, Project-Syndicate; traduzi a partir da publicação do The Jordan Times: https://www.jordantimes.com/opinion/joseph-e-stiglitz/covid-19-and-human-freedom
[14] Oscar Wilde, The Picture of Dorian Gray, Hazleton, 2006, pág. 43; tradução minha.
[15] Mário Vargas Llosa, A Civilização do Espetáculo, Quetzal, 2012, pág. 28.
[16] António Bagão Félix, Desenvolvimento (pós-Covid): memória, discernimento, humanismo, ética, ciência e natureza, in Revista Portuguesa de Cardiologia, 40 (2021) páginas 311-315; https://doi.org/10.1016/j.repc.2020.10.006
[17] “O imperativo categórico, que só enuncia, em geral, o que é obrigação, reza assim: age segundo uma máxima que possa valer simultaneamente como lei universal! Por conseguinte, deves considerar as tuas ações primeiramente segundo o seu princípio subjetivo; mas podes reconhecer se esse princípio pode ter também validade objetiva apenas no seguinte: em que, submetido pela tua razão à prova de te pensares por seu intermédio como universalmente legislador, se qualifique para uma tal legislação universal”. Immanuel Kant, A Metafísica dos Costumes, F.C. Gulbenkian, Lisboa, 3ª edição, 2017, pág. 35; edição disponível para download: https://gulbenkian.pt/publication/a-metafisica-dos-costumes/
[18] Carla Amado Gomes, Defesa da Saúde Pública vs. Liberdade Individual, versão longa da intervenção oral nas 6as Jornadas Novos Horizontes para a Saúde Pública, Guimarães, 10 e 12 de Março de 1999, pág. 23 . https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&cad=rja&uact=8&ved=2ahUKEwi-ws6k_Or1AhVYt6QKHfQVAyIQFnoECAgQAQ&url=https%3A%2F%2Fwww.icjp.pt%2Fsites%2Fdefault%2Ffiles%2Fmedia%2F289-133.pdf&usg=AOvVaw0vY9VYtGhqZC_Xs_0iBEXn
[19] Tradução de notícia da agência Reuters, publicada no dia 5/2/2022, disponível em https://globalnews.ca/news/8597481/ottawa-trucker-convoy-funds-gofundme-us-republicans/
[20] O motivo indicado para justificar a manifestação autodesignada “freedom convoy” foi a contestação da obrigatoriedade de vacinação. Segundo a Canadian Trucking Alliance (CTA), cerca de 90% dos motoristas canadianos estão vacinados ( https://cantruck.ca/statement-by-canadian-trucking-alliance-president-on-ottawa-protests/, o que suscita a interrogação sobre os motivos que levam alguns manifestantes a persistir na ocupação da baixa de Otava.
[21] José Ortega Y Gasset, A Rebelião das Massas (1930); Relógio d'Água, 1989, pág. 26.
[22] Gilles Lipovetsky, L'ère do Vide (1989), Gallimard, Paris, 1989.
[23] Alusão à fábula iraquiana celebrizada por Somerset Maugham: “Havia um mercador em Bagdad que enviou os seus servos ao mercado para comprar provisões, e pouco tempo depois um dos servos voltou, pálido e trémulo, em pouco tempo o servo voltou, branco e trêmulo, e disse, ‘Mestre, ainda agora quando estava no mercado, foi empurrado no meio da multidão por uma mulher e quando me voltei vi que era a Morte que me empurrava. Ela olhou para mim e fez um gesto ameaçador; peço-te que me emprestes o teu cavalo para que eu possa fugir para longe desta cidade e escapar ao meu destino. Irei para Samarra onde a Norte não me encontrará’. O mercador emprestou-lhe o cavalo, o servo montou-o, cravou as esporas nos flancos e partiu tão depressa quanto o cavalo conseguiu galopar. Depois o mercador foi ao mercado e quando encontrou a Morte, no meio da multidão foi ter com ela e perguntou ‘Porque fizeste um gesto ameaçador ao meu servo quando o encontraste esta manhã?’ ‘Não foi um gesto de ameaça’ – respondeu a Morte – ‘Foi uma reação de surpresa. Fiquei admirada por o ver em Bagdad, porque esta noite tenho um encontro com ele em Samarra’”. William Somerset Maugham (1874-1966), Sheppey, in The Collected Plays of W. Somerset Maugham, Vol III, William Heinemann, Londres, 1933, reimpressão de 1952, pág. 298. Versão on line: https://ia801604.us.archive.org/16/items/in.ernet.dli.2015.125970/2015.125970.The-Collected-Plays-Vol3.pdf