"Gestação de Substituição":
Uma lei que falha em aspetos essenciais
A "gestação de substituição", também conhecida pela expressão "barriga de aluguer" é um dos "temas fraturantes", isto é, um assunto que, por envolver questões éticas fundamentais, está na origem de controvérsia e divisão de opiniões. Para formar uma opinião, importa começar por reunir informação esclarecedora sobre o que é a "gestação de substituição" e o que que diz a lei sobre o assunto.
O que é
A definição que consta da lei é a seguinte: "entende-se por 'gestação de substituição' qualquer situação e que a mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade" (artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, alterada por sucessivas Leis: Lei n.º 59/2007, de 04/09, Lei n.º 17/2016, de 20/06, Lei n.º 25/2016, de 22/08, Lei n.º 58/2017, de 25/07, Lei n.º 49/2018, de 14/08, Lei n.º 48/2019, de 08/07). A definição, que serviu para proibir (na lei de 2006), manteve-se para permitir, a partir de 2016.
A “gestação de substituição” pressupõe um contrato entre a pessoa que se dispõe a "suportar" a gravidez (a "gestante", na terminologia da lei) e o "casal beneficiário" a quem a criança deverá ser entregue.
A 'gestação de substituição' só é permitida por lei nas seguintes condições:
- Só pode ser autorizada através de uma técnica de procriação medicamente assistida com recurso aos gâmetas de, pelo menos um dos beneficiários;
- A "gestante" não pode ser dadora de qualquer ovócito;
- É proibido qualquer pagamento ou doação de bens à gestante, exceto o pagamento de despesas de saúde e transporte;
- É proibida se existir uma relação de subordinação económica (contrato de trabalho ou de prestação de serviços);
- Só é permitida se a “beneficiária” não tiver útero, tiver alguma doença do útero que impeça a gravidez ou "em situações clínicas que o justifiquem";
- É necessária autorização prévia do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, precedida de audição da Ordem dos Médicos;
- Deve ser documentada em contrato escrito, com alguns conteúdos obrigatórios, enumerados no Decreto Regulamentar n.º 6/2017, de 31 de julho).
Fora destas condições, a 'gestação de substituição' é considerada crime.
O regime legal estabelece, desde 2016, uma presunção de parentalidade a favor dos "beneficiários": "a criança que nascer através da gestação de substituição é tida como filha dos respetivos beneficiários" (artigo 8.º, n.º 7).
O sonho de ser mãe
A síntese feita acima mostra como a lei apenas permite a 'gestação de substituição' em casos muito limitados. O primeiro caso de 'gestação de substituição' autorizado ao abrigo desta lei foi o de uma mãe que se dispôs assegurar a gestação em lugar da filha sem útero. Neste caso, são evidentes as motivações das pessoas envolvidas: a impossibilidade de gerar, a vontade de ser mãe, a generosidade da mãe/avó, a ausência de interesse ou dependência económica. A relação familiar muito próxima entre todas as pessoas envolvidas faz supor a ausência de traumas de separação. A 'gestação de substituição' surge aqui como um gesto abnegado de generosidade.
A lei permite que esse tipo de gesto solidário possa ser assumido por pessoas (mulheres) sem relação familiar, que se disponham, unicamente por amizade ou solidariedade, a ajudar alguém a concretizar o sonho de ser mãe. A possibilidade de concretizar este sonho é, aliás, o principal argumento a favor da ‘gestação de substituição’.
Percebe-se a proibição legal de remunerar a "gestante". Isso equivaleria a legalizar o "aluguer de barriga" a troco de uma compensação económica. A 'gestação de substituição' com motivação e contrapartida económica ficaria ao mesmo nível de outras formas de exploração do corpo, como a prostituição ou a doação de órgãos por necessidade económica. Se a substituição fosse livre, não faltariam mulheres pobres dispostas a alugar o seu corpo para gerar os filhos de mulheres ricas que quisessem ser mães sem ter de suportar a gravidez… De resto, não faltam as "agências" e os intermediários prontos para fazer lucro à custa do desejo de ser mãe e da carência económica.
O legislador também excluiu a substituição que envolva doação de ovócitos por parte da "gestante", evitando assim as complicações éticas e emocionais inerentes.
Ainda bem que o legislador ponderou esses aspetos. Mas terá ponderado outros aspetos não menos importantes?
A desvalorização da gestante
A lei em vigor presume que a mãe é a "beneficiária" da substituição. Legalmente, inverteu-se a regra da presunção de maternidade a favor da mulher que dá à luz (artigo 1796.º do Código Civil), que o mesmo legislador tinha reafirmado em 2006 (antes de ser alterado em 2016, o artigo 8.º, nº2, da Lei n.º 32/2006, estabelecia que "a mulher que suportar uma gravidez de substituição de outrem é havida, para todos os efeitos legais, como a mãe da criança que vier a nascer"). Com a inversão da presunção, só porque passou a ser legalmente admitido um contrato de substituição, o legislador tomou partido numa questão ética essencial e discutível. Em regra, a mãe é quem deu "material genético" e assegurou a gestação mas, se a técnica médica permite separar os dois “contributos”, qual deles prevalece para decidir quem é a mãe? Quem deve ser considerada mãe: a “mãe genética” ou a “mãe gestante”? A resposta mais sensata, e também mais óbvia, é a de considerar ambas, por muito difícil que se afigure, na prática, a aceitação de uma “dupla maternidade” ou “maternidade partilhada”. Parece-nos de facto mais sensata esta resposta, pelo imperativo ético e social de preservar quer a dignidade da do “contributo” genético, quer a dignidade do corpo da mulher e da sua capacidade para a gestação. A genética e o corpo humanos devem ser preservados da instrumentalização e por isso nenhum deles deve ser privado da sua dignidade.
A opção do legislador por inverter a presunção de maternidade é, no mínimo, estranha: mãe é a "beneficiária" da gestação, mesmo que não seja sequer “mãe genética”! Note-se que a procriação é feita "com recurso aos gâmetas de, pelo menos, um dos respetivos beneficiários" (artigo 8.º, n.º 3), o que significa que a presunção de maternidade está estabelecida a favor de mulher que até pode não ser a "mãe genética", já que a lei permite a dádiva de gâmetas ou embriões. Este é o primeiro reparo a fazer à lei sobre a 'gestação de substituição': menospreza o valor da gestação (gravidez) como contributo pessoal definidor da maternidade.
A irrevogabilidade do consentimento
A desvalorização do contributo da gestante tem outras consequências. A lei não reconhece à "gestante" o direito de se arrepender do contrato que assinou e de assumir os direitos e deveres de maternidade. Com efeito, quer os beneficiários, quer a gestante só podem revogar o seu consentimento “até ao início dos processos terapêuticos de PMA” (Procriação Medicamente Assistida) (artigo 14.º, números 3 e 4). O legislador terá cedido à preocupação com o risco dos conflitos advenientes do arrependimento da gestante. Ao saber que o acordo é irrevogável logo que os processos terapêuticos se iniciam, a gestante pensa duas vezes… mas por muito que pense antes, nenhuma norma jurídica pode evitar as emoções e vontades formadas ao longo da gestação. A norma não só não evita o conflito. É por isso que o Conselho Nacional de ética para as Ciências da Vida (CNECV) chegou a propor a possibilidade de revogar o consentimento até ao início do parto (Parecer n.º 63/CNECV/2012, ponto 2). O legislador não seguiu esta proposta.
Esta opção não pode deixar de se considerar como drástica, senão mesmo violenta, para a "gestante". A gravidez é muito mais que um processo de gestação - é um processo de desenvolvimento de sentimentos e emoções que fazem parte do "ser mãe". Dificilmente se pode aceitar que, passado o período de gestação e de crescendo emocional, a “gestante” esteja pura e simplesmente obrigada a entregar a criança e a afastar-se dela com se nada tivesse acontecido.
Bem mais razoável seria a solução de manter a presunção de maternidade (da gestante), acrescentando-lhe todavia o reconhecimento da maternidade da beneficiária. Se as partes se envolveram num acordo de generosidade em que uma mulher ajuda outra a ser mãe oferecendo-lhe a capacidade de gestação que ela não tem, porque motivo deve uma delas (a gestante) prescindir da sua maternidade? Talvez exista a ilusão de que, ao negar a maternidade à gestante, desaparecerão, de uma vez para sempre, as emoções da gestante. Mas então, as as pessoas envolvidas forem capazes de um acordo de colaboração baseado na generosidade, porquê presumir que não serão capazes de manter essa generosidade e que, por isso, a gestante deve “ir à sua vida” e não interferir na relação familiar dos beneficiários?
Parentalidade descartável
Concomitante com a irrevogabilidade do consentimento a partir do início dos processos terapêuticos, está outra opção questionável do legislador: a admissibilidade da renúncia aos poderes e deveres próprios da maternidade (a renúncia faz parte da própria definição legal de 'gestação de substituição'). Mas há que repor a questão essencial: os poderes e deveres de pai e mãe são passíveis de renúncia? As pessoas podem arrepender-se de praticamente tudo o que fazem e são na vida - de um emprego, de um filme, de uma amizade, até de um namorado ou cônjuge. Mas não podem arrepender-se de serem pai ou mãe e renunciar, por declaração ou contrato escrito. Mal andam as pessoas quando desistem de ser pais. Mal anda a sociedade quando a parentalidade é disponível e mal anda o legislador quando o admite (em rigor, já o tinha feito quando admitiu a adoção plena com consentimento de pais vivos). Há coisas que o legislador, mesmo que tenha sido investido pela mais ampla maioria eleitoral ou referendária, não deve legitimado para fazer. Pode recorrer-se a outros, ou aceitar outros, para assumir poderes e deveres de parentalidade, porque não se pode, porque se deseja melhor para o filho ou filha. Mas a renúncia a ser pai ou mãe é essencialmente um ato contra natura. A parentalidade não é um conceito de medida, não depende dos poderes e dos deveres que se exercem – é um conceito essencial: ou se é, ou não se é, e não depende da vontade humana. Pode-se ser um mau pai, pode-se ser inibido de exercer poderes de parentalidade (todos, no limite), mas não se deixa de ser pai. Pode-se gerar e dar à luz um filho e assinar um acordo de “renúncia ao exercício dos poderes e deveres próprios da maternidade”, mas não se pode renunciar a ser mãe. A parentalidade não se reduz ao que se faz ou não faz. Não é descartável.
Os direitos da criança
Um quarto reparo a considerar é o facto de o legislador, mais uma vez, não ter salvaguardado os direitos de uma das pessoas envolvidas na substituição: a criança. O CNECV tinha recomendado: “a gestante de substituição e o casal beneficiário deverem estar informados que a futura criança tem o pleno direito a conhecer as condições em que foi gerada” (Parecer n.º 63/CNECV/2012, ponto 4). O legislador seguiu a direção oposta. O texto original da lei (Lei n.º 32/2006) dava às pessoas nascidas em consequência de processos de procriação medicamente assistida o direito de obter as informações de natureza genética, mas negava-lhe a identificação do dador (art. 15.º, n.º 2). Mesmo para efeitos de verificação de impedimentos matrimoniais, a regra era apenas obter a informação sobre a existência ou inexistência de impedimento matrimonial. A identidade do dador apenas poderia ser revelada com o consentimento deste ou por decisão judicial baseada em “razões ponderosas”. Na versão de 2019, o direito de obter as informações de natureza genética passou a não estar limitado à verificação da existência de impedimento matrimonial, mas passou a estar limitado pela idade. A criança só tem o direito de obter essa informação depois de completar 18 anos de idade, ou 16 anos se se tratar de saber da existência ou inexistência e impedimento matrimonial. Por outro lado, passou a ser possível obter a informação sobre a identificação civil (isto é, o nome completo) do dador junto do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida. As hesitações e variantes do legislador circunscrevem-se ao contributo genético e à identidade do dador. Mas sobre o contributo e a identidade da gestante, o legislador permaneceu fiel à opção original: sigilo sobre a identidade da gestante e sobre o próprio recurso à ‘gestação de substituição’ (artigo 15.º, n.º 1). Não há qualquer possibilidade de saber quem foi a gestante, nem sequer para efeitos de impedimento matrimonial. Aliás, uma vez que a maternidade foi apagada, a questão dos impedimentos matrimoniais é como se não existisse. A pessoa nascida em ‘gestação de substituição’ até poderá casar com filho ou filha da gestante ou até com a própria gestante!
É discutível esta limitação do direito de uma pessoa saber que o seu nascimento envolveu PMA, de obter informações de natureza genética e de conhecer a identidade do dador e da gestante. Não espantam, por isso, as duas decisões de inconstitucionalidade que esta lei já mereceu (ver Acórdãso do Tribunal Constitucional n.º 225/2018, de 7 de maio, e n.º 465/2019, de 18 outubro).
Afinal, tanto labor para discernir e estabelecer as regras e para abrir portas à PMA para depois se manter o tabu e esconder tudo de uma das pessoas mais diretamente interessadas? A solução de privar pessoas da informação sobre a sua identidade genética viola o princípio da igualdade e é absurda: não se pode dizer a uma pessoa que o seu nascimento envolveu PMA, mas o simples facto de essa informação ser negada é logo um indício de que houve PMA…
Conclusão
Manifestamente, o legislador menosprezou a posição da mãe gestante, os direitos da pessoa gerada e o caráter eticamente irrenunciável da maternidade. Só por si, estes três reparos são suficientes para questionar a bondade e qualidade da lei. A gestação de substituição até pode ser admissível sem esse triplo sacrifício. Se for possível conceber que uma mulher se ofereça generosamente para assegurar a gestação de uma criança sem ficar privada do direito de se arrepender de entregar a criança, sem ter de renunciar ao estatuto de mãe gestante e sem privar a criança de saber, mais tarde, quem foi a sua mãe gestante, então a lei pode ser corrigida e melhorada. Na base da informação esclarecida, há que refletir, formar uma opinião e agir com todos os direitos de cidadania para mudar uma lei que trata a maternidade com coisa renunciável e transacionável. Até que isso suceda, teremos de contar com a sensatez das pessoas e a prudência do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida.