Pessoa amiga partilhou comigo um vídeo em que alguém afirma que a a Europa está a ser invadida pelo Islão, e que dentro de uma década 50% da população dos Países Baixos vai ser islâmica se não travar a imigração. Compara a taxa de natalidade da Espanha (1%) com a da população islâmica (8%), o que significa que a civilização está em risco. Depois destas frases de choque, a montagem do filme mostra a islamização de vários rostos femininos que passam a usar hijab (véu islâmico).
O vídeo é uma montagem típica de desinformação, e o orador baseia a sua informação em factos falsos e em pressupostos errados ou, pelo menos, questionáveis. Comecemos pelos factos.
Mesmo no cenário de continuação e aumento da imigração, a percentagem global de população islâmica na Europa (atualmente cerca de 6%), atingirá os 15% em 2050. O cenário de os países baixos chegarem a 50% dentro de uma década é um disparate. A percentagem deverá chegar aos 15,2% em 2050 e os Países Baixos não serão o país da Europa Ocidental com percentagem mais elevada. Não faltam fontes credíveis para saber e confirmar detalhes, cenários e previsões por país. Ver, por exemplo, o estudo do PEW RESEARCH CENTER, de Washington, EUA, [clicar para aceder]do qual retirei as percentagens acima referidas. São desse estudo os gráficos seguintes. O primeiro representa a distribuição das percentagens de população islâmica em 2016.
Os investigadores projetaram três cenários de evolução, que se podem ver no gráfico seguinte. Em todos eles, teve-se em conta que a população não muçulmana diminui, enquanto a população muçulmana residente aumenta independentemente da imigração.
Para o cenário com imigração mais elevada, a Europa poderá chegar à situação representada no quadro seguinte.
Existem estudos e fontes mais recentes, mas a tendência não se alterou significativamente.
Passemos à questão de fundo. A desinformação alarmista sobre uma “invasão” muçulmana serve para alimentar as propostas populistas de restrição da imigração, frequentemente associadas a referências à criminalidade e ao terrorismo, etc.. Essas propostas - típicas de extremistas, populistas e mesmo de políticos moderados incapazes de conquistar audiências ou votos de outra forma - alimentam os discursos de xenofobia (medo da diferença) e servem para encobrir a incompetência, a preguiça e a falta de coragem para tomar medidas para PROMOVER A NATALIDADE, A FAMÍLIA E A QUALIDADE DE VIDA DOS EUROPEUS.
Em vez de pôr arame farpado nas fronteiras, o que devemos fazer é trabalhar mais pelo bem-estar dos europeus. Todos. Os de origem e os imigrantes. Sem as xenofobias das mentes parvas (no sentido etimológico, pequenas) que polvilham os populismos e extremismos e sem o chauvinismo social típico de uma geração que se autoproclama "frugal" apesar de não ter passado pelos sacrifícios com que as gerações anteriores estabeleceram as bases do welfare de que hoje beneficiam, sem se terem esquecido de ser solidárias.
Ao contrário do que afirmam as pessoas que falseiam as estatísticas com cenários de “invasão islâmica”, os muçulmanos não vêm para a Europa para nos obrigar a viver como eles. ELES VÊM PORQUE PREFEREM VIVER NUMA SOCIEDADE COMO A NOSSA, isto é, COMO NÓS. Eles não estão a invadir, estão a fugir, à procura de uma vida melhor: liberdade, bem-estar e segurança.
Em vez de pôr rótulos nos muçulmanos, de criar alarme sobre falsos problemas, e de criar novos problemas com políticas anti-imigração, devemos trabalhar na solução e começar por ouvir e ler opiniões sensatas, mesmo que venham "de fora". Num website de notícias de Nova Deli, e a propósito do aumento do população islâmica na Europa, encontrei esta sugestão: “o mundo deve apoiar a liberdade de pensamento, os elementos liberais conjugados com a fé, e reviver o espírito dos pensadores livres do Islão medieval. O Ocidente deve colocar uma moratória universal aos fundamentalismos (salafi, wahabi, takfiri) e às interpretações dos Ahatollahs de um islão político e militante; não faz sentido que essas interpretações sejam permitidas em nome da liberdade de religião e de expressão” (Khalid Umar, Islamisation of Europe: West’s Rendezvous with Sharia, in Organiser.org).
Não acompanho tudo o que Khalid Umar escreveu nesse artigo, mas subscrevo a sua sugestão. Os governos e os políticos europeus têm sido demasiado tolerantes com o “islão político e militante” e têm-se esquecido do seu dever de defender os valores fundamentais da dignidade da pessoa humana, que são universais e universalmente reconhecidos. Há muito que a “Sharia” foi considerada incompatível com os princípios fundamentais da democracia, com as liberdades públicas e com o pluralismo na esfera política, conforme julgou o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, na decisão do caso “Refah Partisi (Partido do Bem-estar) e Outros versus Turquia", de 13 /2/2003 (clicar para aceder ao texto do Acórdão e conferir, em especial, o parágrafo 123). Essa incompatibilidade foi reafirmada na Resolução 2253 da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa aprovada em janeiro de 2019. Esta Resolução tem, aliás, um alcance mais vasto que a sentença do TEDH. No "mundo islâmico" (leia-se, nos países ainda com regimes que se apropriam abusivamente do Islão para legitimar e perpetuar o poder), ainda rege a "Declaração do Cairo" de 1990 segundo a qual "o Islão é a religião natural do homem" (como se as outras religiões não o fossem) e "os direitos e liberdades estão subordinados às provisões da Sharia islâmica [...], que é a única fonte de referência para interpretar ou clarificar qualquer artigo desta Declaração".
Nos países que subscreveram e ratificaram a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, os grupos que se manifestam na Europa a reivindicar a 'sharia' - como o grupo que se vê na foto acima - devem ter o mesmo tratamento que quaisquer grupos que se manifestem a favor de toda e qualquer outra discriminação ou tratamento desigual. Nenhuma minoria tem direito a que lhe seja concedido um "modo de vida" diferente, nem sequer tem o direito de o defender, se ele for incompatível com os direitos fundamentais. Nenhum grupo tem o direito de obrigar uma jovem ou uma mulher a usar o 'hijab' contra a sua vontade. Todo o grupo, etnia ou minoria tem o direito de ensinar e aprender a sua cultura. A nenhum grupo, minoria ou seita deve ser permitido "ensinar a ignorância", o ódio e a opressão.
A ideia, tantas vezes repetida, de que "é uma cultura diferente" não se aplica, porque a opressão não é cultura, nem merece ser respeitada. "Choque de culturas" é uma expressão inadequada sempre que estiver fundamentalismo envolvido. O fundamentalismo é, por inerência, falta de cultura. Fundamentalismo à parte, aquilo que por vezes designamos por "choque de culturas" não é verdadeiramente um choque.
Quando os europeus se alarmam com a "islamização" da Europa, não é no Islão, não é na religião, que estão a pensar. É na opressão e na repressão das mulheres, dos jovens, das crianças, das pessoas em geral. O que alarma os europeus é o mesmo que faz com que os cidadãos desses países prefiram a Europa.
A sharia e as suas regras opressoras e bárbaras são inadmissíveis, porque são contrárias à dignidade da pessoa e porque, por isso mesmo, não são, nem podem ser rotuladas como, "vontade de Deus", tenha Ele o nome que tiver. Isto é válido na Europa como em qualquer outra parte do mundo.
Em suma, o que nos cabe, como cidadãos e especialmente aos políticos é trabalhar pela qualidade de vida de todos e de cada um (o que desde há séculos se designa como "bem comum"), sem xenofobias, e, ao mesmo tempo, defender a dignidade, os direitos e as liberdades de todos e cada um. Mesmo que isso implique investigar, perseguir e levar à justiça os que usam esses direitos e liberdades para promover a opressão. E se for assim, a percentagem de pessoas que professam a religião islâmica não nos deve incomodar.
Convenhamos que, em geral, os europeus estão demasiado no sofá e os políticos que elegem ou deixam eleger estão longe de fazer o que pode e deve ser feito para esses dois objetivos. A verdadeira ameaça não é o Islão. É a preguiça europeia.
Carlos da Silva Campos