J. D. Vance, vice-presidente dos EUA, em discurso direto, numa entrevista à Fox News do dia 31 de janeiro justificou a política de imigração americana com estas palavras: "Como líder americano, mas também como cidadão americano, a compaixão deve ser dedicada em primeiro lugar aos concidadãos. Isso não significa odiar as pessoas de fora das fronteiras, mas existe uma escola antiga - e, a propósito, eu considero que é um conceito muito cristão - segundo a qual deve amar-se a família, depois os vizinhos, depois a comunidade, e depois devem amar-se os concidadãos do próprio país, e então, só depois disso, se pode colocar o foco e a prioridade ao resto do mundo. Muitos dos da extrema-esquerda inverteram completamente a ideia. Parece que odeiam os cidadãos do seu próprio país e preocupam-se mais com as pessoas fora das nossas fronteiras. Isso não é forma de conduzir uma sociedade"[1].
O "conceito" está errado e qualificá-lo como "cristão" é falso e abusivo. Vance mostrou, uma vez mais, a sua capacidade para falar do que não sabe. Esta declaração disparatada foi repetida e aproveitada por toda a espécie de charlatães, incluindo a venda de "produtos cristãos"[2]. Mas bem mais grave que isso é o charlatanismo "religioso" que grassa na América, para tentar "cristianizar" o "America First", um slogan do Klu Klux Klan [3]. Rapidamente surgiram repetidores da "teologia" de Vance que recorreram a "argumentos" ainda mais desonestos, ao ponto de atribuir a ideia de amar primeiro os mais próximos a Agostinho de Hipona e a Tomás de Aquino, os incontornáveis e valiosos "doutores da Igreja" para todos os cristãos. A atribuição baseia-se em citações falseadas e escolhidas de forma pouco séria. A desinformação atinge até os autores mais antigos.
O que escreveu Santo Agostinho
Comecemos por Agostinho: "Deus, nosso mestre, ensinou-nos dois mandamentos principais: o amor de Deus e o amor do próximo. Neles encontrou o homem três objetos para amar- Deus, ele próprio e o próximo. Não se engana ao amar-se a si próprio aquele que ama a Deus. Por conseguinte, deve ajudar o seu próximo a amar a Deus, esse próximo a quem, segundo o mandamento, deve amar como a si próprio (a esposa, os filhos , os familiares, todos os homens que puder). E também deve desejar que o próximo o ajude se tiver necessidade. Assim, tanto quanto está na sua mão, ele estará com todo o homem na paz, que é a concórdia bem ordenada dos homens. E a ordem nesta paz consiste: primeiro, em a ninguém prejudicar; e depois em tomar-se útil a quem se puder. Pertence-lhe, pois, em primeiro lugar o cuidado dos seus. Efetivamente ele tem ocasião mais oportuna e mais fácil de os ajudar em virtude da ordem da natureza ou da própria sociedade humana. A este respeito diz o Apóstolo: 'Se alguém não cuida dos seus e, sobretudo, dos da sua própria casa, renegou a fé e é pior do que um não crente.' [4]. Basta ler esta carta a Timóteo para contextualizar a frase de São Paulo e perceber que de forma alguma ela fundamenta uma "ordem de prioridades". No 'De Doctrina Christiana', livro escrito ao longo de três décadas, a explicação de Agostinho desmente de forma ainda mais clara as citações não sérias dos autores americanos que aceitam a ideia de Vance: "Todos devem ser amados de forma igual. No entanto, já que não podemos ser úteis a todos indistintamente, devemos atender de modo especial aos que nos estão mais ligados pelas circunstâncias concretas de tempo e de lugar, ou por quaisquer outras, de ordem diferente. Isso, por assim dizer, como se fosse por sorteio. Suponhamos, por exemplo, que tenhas algo de supérfluo. É preciso dá-lo a quem carece de tudo. Não podes dá-lo, porém, a duas pessoas. Ora, se dois são os que se apresentam, dos quais nenhum leva vantagem, seja pela necessidade, seja por laço de amizade contigo, poderás fazer algo de mais justo do que escolher pela sorte, a qual dos dois deves dar o que não podes oferecer a ambos? Acontece igualmente com os homens em geral, a quem não podes socorrer. Deves considerar como determinado pela sorte o grau de proximidade que, por razão de circunstâncias temporais, te ligou a cada um deles, de modo mais estreito" [5]. Nestas palavras podemos constatar várias considerações: (i) a "proximidade" (de que deriva o dever de amar e cuidar) não depende apenas das "circunstâncias concretas de tempo e lugar", mas também de "quaisquer outras, de ordem diferente", ainda que fortuitas; (ii) a "prioridade" tanto pode depender do "laço de amizade" (familiar, comunitária, nacional) como da "necessidade" (mesmo que necessitado seja um estranho, um estrangeiro ou um desconhecido; (iii) o critério da "necessidade" deve prevalecer sobre o da "amizade" porque "é preciso dá-lo [o amor] a quem carece de tudo".
Não é necessário grande esforço interpretativo para constatar que nada existe de comum entre a ideia de ordo amoris de Santo Agostinho e o "conceito" a que JD Vance recorreu para tentar branquear a política de imigração mais estúpida da história da América. A propósito, são de Santo Agostinho também estas palavras: "Estais todos à espera ver Cristo sentado no céu. Vejam-nO antes debaixo dos pórticos. Vejam-nO a passar fome, a tremer de frio, como um indigente, vejam-nO num estrangeiro"[6]. Por algum motivo Agostinho de Hipona, que escreveu nos séculos IV e V continua a fascinar tantos pensadores, cristãos ou não.
São Tomás e a desigualdade no amor
Por seu turno, Tomás de Aquino, o "doutor angélico" para os cristãos, retomando Agostinho, reconheceu que, apesar de se dever amar igualmente a todos os homens, é legítimo amar uns mais que outros: "mesmo quanto ao afeto, devemos amar mais a um próximo que a outro. E a razão é que sendo os princípios do amor, Deus e quem ama, segundo a maior proximidade em relação a um desses princípios, há de necessariamente ser maior o afeto do amor. Pois, como já dissemos, em tudo o relativo a um princípio, a ordem há de depender da referência a esse princípio.[...] O amor pode ser desigual de dois modos. Ou relativamente ao bem que desejamos ao amigo e então amamos, com caridade, igualmente a todos os homens, por a todos desejarmos o mesmo bem genérico da felicidade eterna. De outro modo, dizemos que o amor é maior por ser o seu ato mais intenso. E então não é necessário amemos igualmente a todos. Ou, devemos dizer, diferentemente, que podemos amar com desigualdade a certos, de dois modos. Primeiro, por amarmos a uns e não a outros, devendo conservar essa desigualdade nos benefícios, porque não podemos servir a todos. Mas tal desigualdade não deve existir na benevolência do amor. Outra, porém, é a desigualdade do amor quando uns são mais amados que outros: Ora, Agostinho não pretende excluir esta desigualdade, mas a primeira, como é claro pelo que diz da beneficência" [7]. Tomás de Aquino enfatizou a legitimidade de amar mais os que são próximos por relação de sangue ou qualquer outra: "a caridade pode ordenar que amemos alguém, por ser nosso consanguíneo ou chegado a nós, por ser concidadão ou por qualquer outro desses motivos lícitos, em ordem ao fim da caridade. E assim, tanto pela caridade lícita como pela imperada, amamos mais, e de muitos modos, os mais chegados a nós" [7]. No entanto, também indicou que esses "mais chegados" podem deixar de estar em primeiro lugar "por nos impedirem de nos unirmos a Deus. E por aí não nos são próximos, mas inimigos, conforme a Escritura: Os inimigos do homem são os seus mesmos domésticos"[8]. E mais adiante clarificou: "cada bem-aventurado quer que os outros tenham o que lhes é devido pela divina justiça, por causa da perfeita conformidade da vontade humana com a divina.[...] toda a ordem do amor dos bem-aventurados será observada relativamente a Deus, de modo a cada um amar mais e ter como lhe sendo mais chegado o que estiver mais próximo de Deus. Cessará, então, em virtude de alguma necessidade, a providência, imprescindível nesta vida, e que nos obriga a prover, mais que a outro, ao que nos for mais chegado. Por cuja razão, nesta vida, pela inclinação mesma da caridade mais o que nos é mais chegado, e quem devemos consagrar maior afeto da caridade. Poderá dar-se, porém, que, no céu, amemos quem nos for chegado, por muitas razões, pois, da alma do bem-aventurado não desaparecerão as causas honestas do amor. Contudo, a todas essas razões sobrelevará incomparavelmente a razão de amar fundada na proximidade de Deus" [9].
Em síntese, Tomás de Aquino afirmou a prevalência da justiça e da "proximidade com Deus", excluindo que a maior ligação aos mais próximos (por "causas honestas do amor") se possa traduzir em prejuízo da justiça ou da proximidade com (a vontade de) Deus. Os dois doutores da Igreja identificaram a proximidade dos familiares, vizinhos, conterrâneos, concidadãos ou companheiros de armas, mas não desprezaram a proximidade que deriva da condição humana. O conceito de "próximo" (o próximo que devemos amar como a nós mesmos) é, por conseguinte, qualquer outro ser humano com quem uma pessoa possa, tenha ou deva interagir.
Em guerra com a Igreja
A visão tacanha que Vance apregoou falseia a noção bíblica de "próximo", para se poder apresentar como paladino da doutrina cristã. No passado, os defensores do racismo e da xenofobia acusavam os católicos de serem de esquerda por insistirem no amor ao próximo, isto é, nas obras sociais. Agora, afirmam que o racismo e a xenofobia são "cristãos" e que os esquerdistas é que inverteram tudo. Tão arrogante quanto imaturo, o jovem vice-presidente afirma ter-se convertido ao catolicismo, mas os seus maiores ataques à Igreja Católica foram cometidos depois dessa "conversão". Na entrevista que concedeu à estação CBS no dia 26 de janeiro, manifestamente perturbado com o teor da declaração dos bispos católicos sobre a política de Trump em matéria de imigração [10], acusou a Igreja católica de não estar a ser um bom parceiro da política de imigração de senso comum votada pelos Americanos" e insinuou que a posição dos bispos era motivada por dinheiro: "acho que a Conferência Episcopal Americana precisa realmente de se ver ao espelho por um momento e refletir se quando recebem mais de 100 milhões de dólares para ajudar a realojar imigrantes ilegais estão preocupados com aspetos humanitários, ou não estarão realmente preocupados com a suas receitas?"[11]. É o que se chama juntar a mentira à calúnia. Desde 1980 que a Igreja Católica colabora com a administração americana para viabilizar o programa USRAP (U.S. Refugee Admissions Program) e todas as pessoas realojadas ao abrigo desse programa eram pré-aprovadas antes da entrada no país. Quanto ao dinheiro público entregue à Igreja Católica, nem sequer cobria os custos do programa [12]. Nenhum católico sensato e culto se incomoda se a Igreja for criticada. A crítica estimula. O que JD Vance fez foi, não uma crítica, mas algo muito mais básico: uma mentira e uma difamação. Durante a campanha, e nas eleições, muitos católicos americanos votaram nos candidatos do partido republicano por se identificarem com a campanha "pró-vida". Pensavam que podiam contar com Trump nessa causa. Na realidade, a única alteração da administração Trump foi o fim da comparticipação pública nas despesas com o aborto legal [13]. O resto ficou como estava e foi deixado para os legisladores estaduais. Depois da eleição, por causa da política de imigração, a administração Trump e a Igreja Católica entraram em rota de colisão. As declarações de Vance surgiram neste contexto, em que o vice-presidente reclama ter doutrina melhor que a dos bispos. Provavelmente deslumbrado com o cargo que lhe ofereceram, Vance comporta-se como a rã que incha para ficar maior que o boi. Se continuar assim, vai rebentar, como na fábula de Esopo, posta em verso por Fedro.
Lixo ideológico dentro da Igreja
Vance, está longe de ser autor ou pregador único nesta matéria. A mesma ideia bizarra de estabelecer uma "ordem do amor" por "círculos concêntricos", de traçar prioridades pelo critério da proximidade, de cristianizar o racismo e a xenofobia e, por conseguinte, de validar a "mass deportation", dos estrangeiros ilegais, apareceu nos websites do costume, incluindo websites e autores "religiosos". A abundância de artigos e discursos pseudo-religiosos [14] que defendem essa ideia bizarra é espantosa e deplorável, porque demonstra até que ponto a ignorância e a perfídia se tornaram vulgares. Recorde-se que o princípio fundamental da liberdade de expressão não protege os discursos de ódio e a ideia exposta por Vance é apenas uma variante desse tipo de discurso. Vance usou argumentos como "cuidar primeiro dos filhos, dos vizinhos e dos concidadãos, antes de quaisquer outras pessoas é puro senso comum" e diz que esse é o conceito de ordo amoris (a ordem do amor). E quando foi criticado, insistiu: "basta googlar ordo amoris...". Se não o souber usar, o Google pode devolver-lhe disparates em vez de cultura, mas é mais fácil e rápido, pelo que até pode ser o seu guia espiritual... A tentativa de cristianização de ideias ou condutas como favoritismo, nepotismo, racismo, xenofobia usando o pretexto do amor aos "mais próximos" ou "concidadãos" é uma aberração contrária ao cristianismo, à civilização, a educação e ao bom senso. Como seria de esperar, surgiram na América vários artigos tentando relativizar, corrigir ou, mais assertivamente, rejeitar a interpretação aberrante da ordo amoris [15]. Várias pessoas lembraram a parábola do Bom Samaritano (Lc 10:25-37), mas, de novo, não faltou quem, diante de uma parábola tão explícita, mantivesse o contorcionismo interpretativo.
Razão versus força
Face à tentativa de apropriação com intuitos políticos, muitos católicos, na América e fora dela, temeram que a Igreja Católica ficasse em silêncio, como tem feito muitas vezes para não dar mais projeção ainda às alegações do género. Mas desta vez, Roma não ficou em silêncio. O Papa Francisco reagiu ao que se está a passar na América com uma Carta aos Bispos dos EUA, datada de 10 de fevereiro e publicada no website do Vaticano [16]. As palavras de Francisco primam pela clareza e vieram lembrar a doutrina que anima os cristãos e os homens de boa vontade. Vale a pena reproduzir esta carta na integra.
"1. O caminho da escravidão à liberdade, que o povo de Israel percorreu, narrado no Livro do Êxodo, convida-nos a olhar para a realidade do nosso tempo, tão claramente marcada pelo fenómeno das migrações, como um momento decisivo da história para reafirmar não só a nossa fé num Deus sempre próximo, encarnado, migrante e refugiado, mas também a dignidade infinita e transcendente de toda a pessoa humana. [17]
2. Estas palavras com que começo não são uma construção artificial. Mesmo um exame superficial da doutrina social da Igreja mostra enfaticamente que Jesus Cristo é o verdadeiro Emanuel (cf. Mt 1, 23); ele não viveu separado da difícil experiência de ser expulso da sua própria terra devido a um risco iminente para a sua vida, e da experiência de ter de se refugiar numa sociedade e numa cultura estranhas às suas. O Filho de Deus, ao fazer-se homem, também escolheu viver o drama da imigração. Gosto de recordar, entre outras coisas, as palavras com as quais o Papa Pio XII iniciou sua Constituição Apostólica sobre o Cuidado dos Migrantes, que é considerada a “Magna Carta” do pensamento da Igreja sobre a migração: “A família de Nazaré no exílio, Jesus, Maria e José, emigrantes no Egito e refugiados nessa terra para escapar da ira de um rei ímpio, são o modelo, o exemplo e a consolação dos emigrantes e peregrinos de todas as idades e países, de todos os refugiados de todas as condições que, acossados pela perseguição ou necessidade, são forçados a deixar sua terra natal, sua amada família e seus queridos amigos para terras estrangeiras.” [18]
3. Da mesma forma, Jesus Cristo, amando a todos com um amor universal, educa-nos no reconhecimento permanente da dignidade de cada ser humano, sem exceção. De facto, quando falamos de “dignidade infinita e transcendente”, queremos enfatizar que o valor mais decisivo possuído pela pessoa humana supera e sustenta qualquer outra consideração jurídica que possa ser feita para regular a vida em sociedade. Assim, todos os fiéis cristãos e pessoas de boa vontade são chamados a considerar a legitimidade das normas e políticas públicas à luz da dignidade da pessoa e dos seus direitos fundamentais, e não o contrário.
4. Tenho acompanhado de perto a grande crise que está a ocorrer nos Estados Unidos com o início de um programa de deportações em massa. A consciência bem formada não pode deixar de fazer um julgamento crítico e expressar o seu desacordo com qualquer medida que identifique tácita ou explicitamente o estatuto ilegal de alguns migrantes com a criminalidade. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer o direito de uma nação de se defender e manter as comunidades seguras daqueles que cometeram crimes violentos ou graves enquanto estavam no país ou antes da chegada. Dito isto, o ato de deportar pessoas que, em muitos casos, deixaram a sua própria terra por razões de extrema pobreza, insegurança, exploração, perseguição ou grave deterioração do ambiente, prejudica a dignidade de muitos homens e mulheres, e de famílias inteiras, e coloca-os num estado de particular vulnerabilidade e de privação de defesa.
5. Esta não é uma questão menor: um autêntico Estado de direito verifica-se precisamente no tratamento digno que todas as pessoas merecem, especialmente as mais pobres e marginalizadas. O verdadeiro bem comum é promovido quando a sociedade e o governo, com criatividade e estrito respeito pelos direitos de todos — como afirmei em inúmeras ocasiões — acolhem, protegem, promovem e integram os mais frágeis, desprotegidos e vulneráveis. Isto não impede o desenvolvimento de uma política que regule a migração ordenada e legal. No entanto, este desenvolvimento não pode acontecer através do privilégio de alguns e do sacrifício de outros. O que é construído com base na força, e não na verdade sobre a igual dignidade de cada ser humano, começa mal e terminará mal.
6. Os cristãos sabem muito bem que é somente afirmando a dignidade infinita de todos que a nossa própria identidade como pessoas e como comunidades atinge a sua maturidade. O amor cristão não é uma expansão concêntrica de interesses que pouco a pouco se estendem a outras pessoas e grupos. Por outras palavras: a pessoa humana não é um mero indivíduo, relativamente expansivo, com alguns sentimentos filantrópicos! A pessoa humana é um sujeito com dignidade que, através da relação constitutiva com todos, especialmente com os mais pobres, pode amadurecer gradualmente na sua identidade e vocação. O verdadeiro ordo amoris que deve ser promovido é aquele que descobrimos meditando constantemente na parábola do “Bom Samaritano” (cf. Lc 10, 25-37), isto é, meditando no amor que constrói uma fraternidade aberta a todos, sem exceção. [19]
7. Mas preocupar-se com a identidade pessoal, comunitária ou nacional, à parte destas considerações, introduz facilmente um critério ideológico que distorce a vida social e impõe a vontade do mais forte como critério de verdade.
8. Reconheço os vossos valiosos esforços, queridos irmãos bispos dos Estados Unidos, ao trabalhardes em estreita colaboração com os migrantes e refugiados, proclamando Jesus Cristo e promover os direitos humanos fundamentais. Deus recompensará com abundância tudo o que fizerdes pela proteção e defesa daqueles que são considerados menos valiosos, menos importantes ou menos humanos!
9. Exorto todos os fiéis da Igreja Católica, e todos os homens e mulheres de boa vontade, a não cederem a narrativas que discriminam e causam sofrimento desnecessário aos nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados. com caridade e clareza todos somos chamados a viver na solidariedade e na fraternidade, a construir pontes que nos aproximem cada vez mais, a evitar muros de ignomínia e a aprender a dar a nossa vida como Jesus Cristo deu a sua pela salvação de todos.
10. Peçamos a Nossa Senhora de Guadalupe que proteja os indivíduos e as famílias que vivem com medo ou dor devido à migração e/ou deportação. Que a “virgem morena”, que soube reconciliar os povos quando estavam em inimizade, nos conceda a todos voltar a encontrar-nos como irmãos e irmãs, no seu abraço, e assim dar um passo em frente na construção de uma sociedade mais fraterna, inclusiva e respeitadora da dignidade de todos". Sem subterfúgios, Francisco rejeitou as ideias aberrantes que estão a ser propaladas por pessoas que se afirmam cristãs, mas que cederam à retórica estúpida e perigosa que está a envenenar o século XXI. Vance, apesar de falar ao ritmo de uma AK-47, é uma pessoa sem cultura, educação e decoro, mas é também vice-presidente dos EUA. Com ele devemos aprender a não nos deixarmos impressionar pelo poder. Porque não basta ter poder para ter razão. Francisco não tem o poder, nem a força, nem a saúde de Vance, mas sobra-lhe algo que Vance não tem: razão.
Cristãos ou disfarçados de cristãos?
Não faltam, no mundo e entre nós, aprendizes de Vance e papagaios repetidores dos discursos de ódio, xenofobia, racismo, etc. [20]. Alguns, como a maior parte dos líderes populistas, distinguem-se pela sua arrogância e falta de educação. Exploram a mentira e a ignorância, andam à caça não do "voto útil", mas do voto estúpido. Outros, tentam surfar a mesma onda falando de "identidade", "valores", "segurança", "pátria", "nação", ou até mesmo de "democracia" e "liberdade" - invariavelmente falseando todos estes conceitos. Outros ainda, tentam discursos aparentemente mais sérios e suaves, e usam o Nome de Deus e até a condição de "católico" (leigo, clérigo ou teólogo) para enganar os crentes e devotos com escritos e declarações pouco sérias e com falsificações grosseiras dos textos da doutrina cristã. Infelizmente, o lixo ideológico também se produz dentro da Igreja Católica e foi por isso que, mais uma vez, Francisco não ficou em silêncio. Ele não se limitou a expor ("o algodão não engana") o que existe de aberração nos discursos de ódio disfarçados com uma versão falsa e grosseira de ordo amoris; mais que isso, Francisco apontou o caminho e a atitude que sempre, sempre, definiu os cristãos e as demais pessoas de boa vontade. Quando escreveu "O amor cristão não é uma expansão concêntrica de interesses que pouco a pouco se estendem a outras pessoas e grupos", desmentiu diretamente o dislate de Vance. Quando escreveu "A consciência bem formada não pode deixar de fazer um julgamento crítico e expressar o seu desacordo com qualquer medida que identifique tácita ou explicitamente o estatuto ilegal de alguns migrantes com a criminalidade", atacou frontalmente a ignóbil 'mass deportation' de Trump. Estas ideias estão a ser apregoadas como se fossem cristãs. Na era da pós-verdade, enquanto os cristãos parecem ter vergonha de o ser, aparecem falsos “cristãos” sem vergonha de espécie alguma… Cabe-nos distinguir o trigo do joio, no só por razões de convicção religiosa, mas também porque é dessa capacidade para resistir à estupidez que depende o estado da democracia. Ela é uma orquídea. Só a educação, a cultura e - não menos importante - a bondade a podem transformar numa edelweiss.
Carlos Campos 17/12/2025
Ilustração: Imigrantes no convés de um barco a vapor contemplando a Estátua da Liberdade, in Frank Leslie’s Illustrated Newspaper, 2/7/1887.
Notas
[1] Traduzi diretamente a partir do vídeo da Fox News: https://www.youtube.com/watch?v=o98Po0lWZxE&t=274s, a partir do minuto 4:34.
[2] Não acredita? Veja isto: https://www.youtube.com/watch?v=-8_kH3BOOW4. O disparate infantil de J. D. Vance serve para vender farinha e pão "feito como Deus quer"…
[3] O slogan "America First" é antigo e esteve ligado a duas realidades: a "não intervenção" na guerra e o terrorismo racial. Em 1916, em campanha pela reeleição, Woodrow Wilson prometeu manter os EUA neutrais na primeira guerra mundial com o slogan "He kept us out of War, America First". Não cumpriu a promessa; os EUA declararam guerra à Alemanha no dia 6/4/1917. Na edição do Fiery Cross, o "jornal" do Klu Klux Klan, do dia 8/12/1922, o editorial continha a frase: "Klansmen are 100 per cent American because they stand for America first last and all the time". O artigo acusava os católicos de serem "un-american". Numa manifestação do KKK, em setembro de 1923, em Terre Haute, foram usados cartazes com o slogan "America First", no contexto da defesa de restrições à imigração. Pelo menos uma das fotos pode encontrar-se no arquivo da Getty Images: https://www.gettyimages.pt/detail/fotografia-de-notícias/ku-klux-klan-stages-an-america-first-parade-in-fotografia-de-notícias/514702614. A conotação racista do slogan está bem estabelecida e documentada. Ver, por exempo,
Jill Weiss Simins, "America First": The Klu Klux Klan influence on Immigration Police in the 1920s; Hosier State Chronicles, 20/6/2019; https://blog.newspapers.library.in.gov/america-first-the-ku-klux-klan-influence-on-immigration-policy-in-the-1920s/ ;
David Emery, Was 'America First' a Slogan of the Ku Klux Klan?; Snopes, 9/2/2018; https://www.snopes.com/fact-check/america-first-ku-klux-klan-slogan/.
Em 1940, surgiu nos EUA o 'The America First Committee', defensor da neutralidade na segunda guerra mundial. Dissolveu-se depois do ataque japonês a Pearl Harbor, mas alguns dos seus membros, como o Senador Robert A. Taft defenderam a não entrada dos EUA na NATO. Uma ideia que Trump também tentou retomar. Ver
Wayne S. Coyle, America First: The Battle against Intervention, 1940-1941; Univ. de Wisconsin, Madison, 1953.
[4] Agostinho de Hipona, A Cidade de Deus, Vol. III; Fund. Calouste Gulbenkian, Lisboa, 5ª ed., 2018; https://gulbenkian.pt/publications/a-cidade-de-deus-iii/; pp. 1920-1921. Agostinho cita São Paulo (1 Tm 5-8). Tratando-se aqui de um versículo da Bíblia, substituí a tradução da F.C.Gulbenkian pela versão mais recente da edição da Conferência Episcopal Portuguesa:
São Paulo, 1ª Carta a Timóteo; in As Cartas Pastorais, edição ad exerimentum da Conferência Episcopal Portuguesa, versão de 1 de setembro de 2022; https://conferenciaepiscopal.pt/biblia/prov/61_1Tm2TmTt.pdf; pág. 10.
[5] Agostinho de Hipona, Sobre a Doutrina Cristã (De Doctrina Christiana); editora Paulus, São Paulo, 2002; Livro I, Cap. 28, par. 29; https://efosm.wordpress.com/wp-content/uploads/2013/02/a-doutrina-cristc3a3-santo-agostinho.pdf; pág. 66.
[6] Agostinho de Hipona, Sermão 25, 8. https://www.augustinus.it/latino/discorsi/index2.htm. "Exspectat unusquisque vestrum suscipere Christum sedentem in caelo. Attendite illum iacentem sub porticu, attendite esurientem, attendite frigus patientem, attendite egenum, attendite peregrinum".
[7] Tomás de Aquino, Suma Teológica, Pars Secunda Secundae, Questão 26, art. 6 - Se devemos amar mais a um próximo que a outro; tradução de Alexandre Correia, Vol 3; Editoras Eclasiae (Campinas) e Permanência (São Paulo), Brasil, 2016; transcrição on line: https://sumateologica.files.wordpress.com/2017/04/suma-teolc3b3gica.pdf; pag. 1913.
[8] Ibidem, art. 7 - Se devemos amar mais os melhores que os mais chegados a nós; pág. 1915.
[9] Ibidem, art. 13 - Se a ordem da caridade subsiste na pátria, pp. 2000-2001.
[10] Statement of Archbishop Broglio on Executive Orders Signed by the President; USCCB - United State Conference of Catholic Bishops, 22/1/2025; https://www.usccb.org/news/2025/statement-archbishop-broglio-executive-orders-signed-president.
[11] As declarações de Vance na entrevista com Margaret Brennan podem ouvir-se no website da CBS, que também fornece a transcrição: https://www.cbsnews.com/news/jd-vance-transcript-face-the-nation-01-26-2025/;
Camilo Barone, Vice President Vance criticizes US bishops over immigration; National Catholic Reporter; 26/1/2025; https://www.ncronline.org/news/vice-president-vance-criticizes-us-bishops-over-immigration;
Sudiksha Kochi, 'Look in the mirror': Vance knocks Catholic organization for criticizing Trump immigration policy; USA Today, 26/1/2025; https://eu.usatoday.com/story/news/politics/2025/01/26/vance-knocks-conference-catholic-bishops/77956648007/;
Paul Elie, J.D. Vance Brawls with the Bishops over th3 Tr4ump-Musk Agebd; The New Yorker, 11/2/2025; https://www.newyorker.com/news/the-lede/j-d-vance-brawls-with-the-bishops-over-the-trump-musk-agenda;
Vance spars with bishops over immigration policy; Arkansas Catholic, 3/2/2025; https://arkansas-catholic.org/2025/02/03/vance-criticizes-catholic-bishops-immigration-policies/;
Aleja Hertzler-McCain, Despite Vance attack, Catholic bishops press ahead on defending migrants; Religion News, 30/1/2025; https://religionnews.com/2025/01/30/despite-vance-attack-catholic-bishops-press-ahead-on-defending-migrants/.
[12] USCCB Statement on its Work with the U.S. Refugee Admissions Program; USCCB - United State Co ference of Catholic Bishops, 26/1/2025; https://www.usccb.org/news/2025/usccb-statement-its-work-us-refugee-admissions-program.
[13] Decreto presidencial (executive order) 14182 de 24 de janeiro de 2025; https://www.govinfo.gov/content/pkg/FR-2025-01-31/pdf/2025-02175.pdf.
[14] A título de exemplo, alguns dos artigos que seguem e fazem a apologia da mesma tese aberrante: Richard Clements, First, Love Locally: JD Vance and ‘Ordo Amoris’; Word on Fire, 11/2/2025; https://www.wordonfire.org/articles/first-love-locally-jd-vance-and-ordo-amoris/. O website que deu guarida a este artigo - Word on Fire - foi criado no ano 12000 por Robert Barron, bispo da diocese de Winona–Rochester (Minnesota sul, EUA), desde julho de 2022.. É chocante que um prelado da Igreja Católica!
James Caldwell, Ordo Amoris - A Christian Principle Or An Excuse to Forgo Our Fellow Man?; The Mainly Catholic, 2/2/2025; https://www.themanlycatholic.com/blog/ordo-amoris-a-christian-principle-or-an-excuse-to-forgo-our-fellow-man/. Neste caso, trata-se de um blog de autor (Caldwell), que se afirma "católico" e defensor da "masculinidade"(sic), e que mendiga seguidores com esta frase: "join us to become saints today"...
R.R. Reno, JD Vance is Right About the ‘Ordo Amoris’; Compact Mag; https://www.compactmag.com/article/jd-vance-is-right-about-the-ordo-amoris/.
Sebastian Pestritto, Ordo Amoris: Putting the American People First; The American Postliberal, 5/2/2025; https://www.americanpostliberal.com/p/ordo-amoris-putting-the-american; [
[15] Por exemplo: David P. Cassidy, Augustine, Aquinas, the Veep, and the Ordo Amoris; 10/2/2025; https://www.davidpcassidy.com/blog/thomas-aquinas-and-the-ordo-amoris-a-response-to-jd-vances-interpretation; Cassidy é pastor da Igreja cristã luterana de River Church (Boca Raton, Florida). Stephen J. Pope, The problem with JD Vance’s theology of ‘ordo amoris’—and its impact on policy; in America - The Jesuit Review, 13/2/2025; https://www.americamagazine.org/faith/2025/02/13/ordo-amoris-stephen-pope-vance-249926. Pope é professor de ética teológica no Boston College. Kar Armas, JD Vance is wrong: Jesus doesn't ask us to rank our love for others; National Catholic Reporter, 1/1/2025; https://www.ncronline.org/opinion/guest-voices/jd-vance-wrong-jesus-doesnt-ask-us-rank-our-love-others. Sigal Samuel, JD Vance accidentally directed us to a crucial moral question; Vox, 12/2/2025: https://www.vox.com/future-perfect/398460/jd-vance-ordo-amoris-order-love-christianity-catholic-charity.
[16] Carta do Santo Padre Francisco aos Bispos dos EUA, de 10 de fevereiro de 2025 https://www.vatican.va/content/francesco/en/letters/2025/documents/20250210-lettera-vescovi-usa.html. Tradução minha a partir do texto oficial em lingua inglesa. As notas de rodapé inseridas no texto citado são da carta do Papa, apenas acrescentei hiperligações.
[17] Cf. Declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé, Dignitas infinita sobre a Dignidade Infinita sobre a Dignidade Humana, 8 de abril de 2024; https://press.vatican.va/content/salastampa/es/bollettino/pubblico/2024/04/08/080424c.htm.
[18] Pio XII, Constituição apostólica Exsul Familia de Spirituali Emigrantium Cura (1 agosto 1952): « Exsul Familia Nazarethana Iesus, Maria, Ioseph, cum ad Aegyptum emigrans tum in Aegypto profuga impii regis iram aufugiens, typus, exemplar et praesidium exstat omnium quorumlibet temporum et locorum emigrantium, peregrinorum ac profugorum omne genus, qui, vel metu persecutionum vel egestate compulsi, patrium locum suavesque parentes et propinquos ac dulces amicos derelinquere coguntur et aliena petere». A Livraria Editora Vaticana publicou em 2020 uma edição do texto italiano original, acompanhado da mensagem do Papa Francisco no Dia Internacional do Migrante de 2019 e de um comentário de Andrea Ricciardi (historiador, fundador da Comunidade de Santo Egídio e presidente da Società Dante Alighieri) e Fabio Baggio (padre, membro do Movimento dei Focolari). La Famiglia Esule, LEV, Roma, 2020.
[19] Cf. Francisco, Encíclica Fratelli Tutti, 3/10/2020; https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html.
[20] Vance falseou a ideia de ordo amoris de Santo Agostinho para "justificar" o bloqueio da ajuda humanitária da USAID. Ross Douthat, colunista conservador, escreveu no The New York Times que "a quantidade de dinheiro que gastamos em esforços humanitários é demasiado pequena para ser considerada uma grande área de desperdício orçamental, e os seus benefícios justificam quase certamente esses valores em dólares".
Ross Douthat, Can MAGA Run the American Empire?; The New York Times, 8/2/2025; https://www.nytimes.com/2025/02/08/opinion/trump-usaid-maga.html. O artigo foi reproduzido no jornal indiano The Economic Times (versão em língua inglesa); https://economictimes.indiatimes.com/news/international/global-trends/can-maga-run-the-american-empire/articleshow/118084054.cms?fbclid=IwY2xjawIepNdleHRuA2FlbQIxMQABHQTqmpO67RfdBc_L3s03rDrcCs_ZjlAu92-JPiLS4BJLKvoaSnZj-ZZIUA_aem_RhLx2TZrr-csQAGiW576sQ