16 Jan
16Jan

Na origem das campanhas anti-vacinação estão grupos bem organizados e financiados. São organizações lucrativas e sem escrúpulos. Máfias.

Não me refiro às pessoas que têm razões para não se vacinarem ou que têm dúvidas ou receios sobre efeitos secundários. Não me refiro às pessoas que discordam da vacinação obrigatória para todos (eu próprio discordo). Refiro-e às pessoas que reivindicam a paragem imediata da vacinação anti-COVID, para que possam vender hidroxicloroquina (HCQ), outra droga qualquer, curas falsas, livros ou DVDs. Estou a falar de um negócio de muitos milhões, baseado na mentira, na falsificação e na exploração dos receios das pessoas.


Organizações de fachada


Quanto mais se investiga sobre estas pessoas e organizações, mais sinistras e macabras são as descobertas. Os anti-vaxxers criaram dezenas de organizações de fachada, favorecidas pela facilidade da internet e das redes sociais. No essencial, as mensagens que fazem passar são falsas, perigosas e danosas para a saúde das pessoas. Apesar de se apresentarem como especialistas, professores e doutorados - qualidades que raramente têm - , a sua argumentação carateriza-se pela desonestidade, banalidade e vacuidade. Reunem financiamentos avultados e recursos suficientemente apelativos para pagar os recursos necessários para chegar a muitas pessoas. Livros e folhetos bem ilustrados, websites enternecedores, muitos sorrisos e tudo o que sirva para aproveitar os sentimentos das pessoas.


Financiamentos suspeitos


Quem financia estas organizações? Ao contrário do que querem fazer crer, não vivem das doações do público nem da venda dos seus suplementos, livros ou DVDs. A campanha anti-vaxx interessa ao negócio da hidroxicloroquina (HCQ), uma droga utilizada no tratamento de várias doenças (malária, lupus). A inadequação da HCQ para tratar a COVID ficou assente a partir de março/abril de 2020, depois dos alertas publicados por várias autoridades de saúde, universidades e outras fontes credíveis. Em junho de 2020, a FDA revogou a autorização de uso de emergência (EUA) para a HCA.  Apesar disso, a máfia anti-vaxx continuou a campanha e várias organizações continuaram a insistir na HCA como capaz de curar a COVID em 10 dias. Em julho de 2020, o presidente Trump forçou um empréstimo de 765 milhões de dólares a uma empresa privada para produzir HCQ. Trump emitiu uma executive order, sem o escrutínio do congresso, do senado ou das autoridades da concorrência. As dúvidas desta operação estiveram na origem da suspensão do empréstimo, depois de Trump ter saído da Casa Branca.Trump usou dinheiros públicos para financiar organizações anti-vaxx. Usou o Paycheck Protection Program (PPP) como cortina para encobrir esse financiamento, mas a operação não escapou à investigação de Elizabeth Dwoskin e Aaron Gregg, jornalistas do jornal The Washington Post. O PPP tinha sido criado para apoiar pequenas empresas e negócios a manter os seus pagamentos durante a pandemia COVID. Quando Trump financiou organizações anti-vaxx, algumas delas já tinham sido denunciadas pelas autoridades e restringidas pelas redes sociais.


Propaganda sem escrúpulos


As ramificações da máfia anti-vaxx não passaram despercebidas. Desde o início da pandemia que têm surgido alertas das instituições e autoridades de saúde, e também das organizações cívicas que monitorizam e combatem as fake news, os extremismos e os discursos de exclusão e ódio. As organizações da máfia anti-vaxx adotam nomes tão pomposos como Aliança Mundial dos Médicos, Conselho Mundial para a Saúde. Nestes nomes, repetem-se palavras como "médicos", "saúde", "cuidado", "crianças", "liberdade" e até referências religiosas. No entanto, são quase sempre anónimas, raramente identificam os seus dirigentes e financiadores. Entre as escassas dezenas de pessoas conhecidas como dirigentes, evidenciam-se pessoas que tiveram problemas com ordens profissionais, autoridades de saúde, reguladores da publicidade ou outras, quase sempre por falta de ética, desinformação, etc. Os websites destas organizações, quase sempre com apresentação gráfica primorosa, terminam invariavelmente com discretos disclaimers, isto é, declarações de isenção de responsabilidade, em que admitem que a informação prestada pode ser falsa ou errada e que não tem valor de recomendação. Pelo meio, o conteúdo é invariavelmente a combinação de verdades inofensivas com as falsidades mais descaradas. Referem-se "especialistas" ou "estudos" que ou não dizem o que lhes é atribuído, ou não são o que dizem ser. Procuram vender "terapias" e "tratamentos" "alternativos" para a COVID, como a hidroxicloroquina ou até a nebulização com peróxido de hidrogénio (água oxigenada). Noutros casos, procuram vender livros, documentários ou simplesmente merchandising anti-vaxx, desde máscaras com a impressão "esta máscara é tão inútil como os idiotas que a exigem" ou T-shirts com a impressão "Jesus é a minha vacina". O nível ético destas recomendações e destes processos de venda é abaixo de zero.

Os movimentos anti-vacinas não são uma novidade. Existem desde que se inventaram e administraram as primeiras vacinas. A máfia anti-vaxx que emergiu com a pandemia COVID-19 representa uma ruptura com essa tradição. O que enfrentamos não é a continuação de uma corrente, uma tradição. O que distingue a máfia anti-vaxx não são as convicções, mas a ausência de escrúpulos em prejudicar a saúde pública e lucrar com isso.


Redes virais


Nas redes sociais, os mafiosos anti-vaxxers desdobram-se em múltiplas páginas de charlatanismo. Enquanto a maior parte da imprensa se limitava a repetir os números de uma COVID em expansão, alguns jornalistas, associações cívicas e grupos de fact-checkers denunciaram cedo o que estava a acontecer. Ver, por exemplo o relatório da Fundação Avaaz, de agosto de 2020. A máfia anti-vaxx começou a organizar-se ainda antes da chegada das vacinas contra a COVID-19! A pandemia foi um maná para o negócio anti-vaxx, que aproveitou o potencial das redes sociais para atingir um número de pessoas muito elevado. Nos EUA, em Março de 2021, 12 procuradores gerais dirigiram uma carta aos CEO do Facebook e do Tweeter, instando-os a tomar medidas. Pressionada pelas autoridades e por alguma comunicação social, a Meta, empresa que detém as redes Facebook e Instagram, sentiu-se na obrigação de tomar medidas. encerrar algumas páginas anti-vaxx e emitiu uma declaração sobre o assunto. O artigo de Dan Milmo, do jornal The Guardian, indica que a problema persistia em novembro de 2021. 

O algoritmo do Facebook é ineficaz contra a desinformação produzida pela máfia anti-vaxx. A atividade da máfia anti-vaxx representa cerca de mil milhões de dólares de receitas para as empresas detentoras das redes sociais. Quando alguém partilha um conteúdo anti-vaxx, o algoritmo da Meta não atribui esse conteúdo ao autor original mas ao utilizador que o partilha. Isso evita identificar os anti-vaxxers originais e alimenta a ilusão de que são muitos. Na realidade, a maior parte dos conteúdos anti-vaxx que circulam nas redes sociais foi criada por escassas dezenas de pessoas. Há que reconhecer que as redes sociais já suspenderam e encerraram muitas páginas e posts anti-vaxx com informações falsas. Mas a tarefa é difícil. Para recuperar a credibilidade, o Facebook introduziu mecanismos destinados a alertar os utilizadores. Quando um utilizador se pronuncia sobre vacinas, surgem hiperligações para informação fidedigna. Quando se detetam fake news, sugem alertas para os utilizadores, indicado que a "notícia" não foi verificada ou foi desmentida, que a citação está "fora do contexto", etc., convidando o utilizador a verificar por si próprio. Os anti-vaxxers queixam-se que isto é censura.


Da infodemia ao crime


A Organização Mundial de Saúde aponta a "infodemia" como "o excesso de informação incluindo informação falsa ou distorcida" em meios digitais ou convencionais. 131 estados e a UE subscreveram uma declaração sobre a "infodemia". Todavia, as campanhas da máfia anti-vaxx não são mera desinformação ou publicidade agressiva. 

A desinformação é uma tipologia de crime em desenvolvimento e vai ser um dos combates mais duros do século XXI. 

Os anti-vaxxers não são pessoas com opiniões desalinhadas. O perfil do anti-vaxxer por trás das páginas e websites não é o de um mero charlatão que vende a banha da cobra na feira da COVID. É uma pessoa que ganha dinheiro à custa de desinformação grosseira e danosa para a saúde púbica. Ganha dinheiro com o medo e as dúvidas das pessoas. Ganha dinheiro a coberto de disclaimers, do abuso de liberdade económica e do abuso da liberdade de expressão. As ordens jurídicas democráticas ainda não ativaram as ferramentas adequadas para lidar com este tipo de criminalidade.


Referir os anti-vaxxers como máfia pode parecer um exagero. As caraterísticas típicas de uma máfia são fáceis de observar. A diversidade de organizações com negócios diferenciados e variantes de argumentação não impede as redes de cumplicidade e colaboração cruzada.  Para demonstrar que merecem a designação de máfia, não vou indicar exemplos de websites nem links para páginas. Seria fazer o jogo da propaganda anti-vaxx e… make the shit hit the fan.

Para quem tenha dúvidas sobre esta matéria, recomendo a leitura de dois relatórios, infelizmente apenas disponíveis em inglês:


- A Case Study in Facebook’s Failure to Tackle COVID-19 Disinformation, publicado em outubro de 2021 pelo Institute for Strategic Dialogue (ISD), uma organização registada em vários países. As listas de dirigentes, fundadores, membros e financiadores são públicas e estão disponíveis no seu website. O ISD dedica-se a combater as fake news, os extremismos e os discursos de de discriminação e ódio;


- The Anti-Vaxx Playbook, publicado ainda em 2020 pelo Center for Countering Digital Hate (CCDH), uma organização não governamental sem fins lucrativos com escritórios em Washington e Londres, dedicada a monitorizar e "combater a arquitetura dio ódio e da desinformação on line". O nome dos dirigentes e as fontes de financiamento são divulgadas no seu website. O relatório é o resultado de uma investigação pelo mundo das organizações anti-vaxx. Para conhecer as táticas e métodos, o CCDH infiltrou investigadores numa reunião dos principais dirigentes anti-vaxx.


Radicalização, fanatização


A máfia anti-vaxx está a fazer tudo para transformar a sua mensagem numa "causa". Disfarçadas de proposições sensatas, como a defesa da liberdade, a prevalência da autonomia individual e familiar face aos estados e outras, as campanhas anti-vaxx estão a propalar afirmações falsas, desonestas e mesmo contraditórias entre si, incluindo teorias da conspiração. Vale tudo. O objetivo é instrumentalizar o cansaço das pessoas para as radicalizar e, se possível, criar uma legião de seguidores fanáticos. 

Ao contrário dos fundamentalismos baseados na radicalização de populações com baixo nível de educação, estas campanhas ambicionam conquistar seguidores entre todas as camadas da população. A aparência erudita, letrada e doutorada consegue conquistar seguidores até entre pessoas com elevado nível de educação. O excesso de ruído que carateriza as sociedades modernas faz com que a preguiça seja mais grave que a ignorância. Os anti-vaxxers apelam a que se questionem as vacinas, os cientistas, os governos e as autoridades de saúde. Querem fazer crer que os cidadãos sensatos estão a dormir e precisam de ser acordados.

Com um punhado de arruaceiros e outros tantos fanatizados, já foi possível promover assaltos a centros de vacinação em várias cidades, na Europa e nos EUA. Nas manifestações anti-vaxx aparecem vários grupos de pessoas: misturados com as que têm dúvidas e que "estão fartas", aparecem os arruaceiros do costume e também os operacionais da agit-prop da máfia anti-vaxx. De vez em quando até aparecem alguns dos mafiosos proeminentes. Comparado com essas manifestações, o incidente de Odivelas foi um fait divers caricato e infantil. Mas a comédia pode transformar-se em tragédia.

É natural que muitas pessoas estejam cansadas dos efeitos da pandemia e das medidas oficiais que afetam o modo de vida. É legítimo que questionem a necessidade ou até mesmo a legitimidade de algumas dessas medidas. A máfia anti-vaxx aproveita-se desses estados de espírito para ganhar dinheiro. A pandemia não desaparece com a negação nem com as "tratamentos" falsos. Embora estejam tenham sido denunciados e desacreditados há pelo menos um ano, continuam a causar dano à saúde pública, física e mental. É de prever que a máfia não desapareça com o fim da pandemia. Este tipo de oportunismo e parasitismo não nasceu com ela e poderá assumir novas "variantes". 

Nas sociedades baseadas na liberdade, ninguém deve ser impedido de impingir o mais inútil dos produtos, mesmo que seja um livro de aldrabices. O mercado que decida. Coisa diferente é ser complacente com a difusão de falsidades que afetam a saúde pública, a ética médica e farmacêutica e as normas que regem a publicidade.

Não é preciso grande esforço para desmentir as mentiras que os anti-vaxxers difundem. A sua argumentação não resiste à verificação mais básica. Os livros, folhetos e manifestos contra a vacinação, ainda que embelezados com candura e ilustração, raramente ultrapassam o nível da banalidade e primam pela falta de rigor. É admissível que se defendam modos de vida seguros sem vacinação, mas não é admissível promovê-los fazendo espalhando mentiras e fazendo campanha contra a vacinação, especialmente em contextos de crise sanitária. 


Das fake news ao fact checking

Não faltam fontes de informação fidedignas sobre a vacinação, suas vantagens e riscos.
A dificuldade está na eficácia da informação. Quanto menos verdadeira for uma mensagem, mais fácil é tornar-se viral. Numa época de crise do jornalismo, cada vez mais carente de suporte financeiro e audiência, ficou terreno livre para as "notícias" não verificadas, para as fake news. As pessoas que querem a verdade e que se iludiram com a ideia de que as redes sociais substituem o jornalismo, estão agora a descobrir que precisam de alguém que faça a verificação dos factos. Os fact-checkers começam a estar em voga, porque o mundo das notícias foi poluído pelas fake news e pelos "jornalistas" com outras causas que não sejam a verdade e a objetividadeO fact checking deve ser feito ANTES da difusão da notícia, não por um censor, mas pelo próprio editor das noticias. Tal como os medicamentos podem ser de venda livre ou de prescrição médica, também as notícias se distinguem entre as que conseguimos verificar e as que necesitam de ser verificadas. Se quisermos mesmo a verdade, continuaremos a precisar de quem verifique os factos. Antes (como deve ser) ou depois (se tiver de ser). 

Eis alguns cuidados básicos perante as mil e uma "notícias" da infodemia:

  • Identificar o autor da notícia (não a pessoa ou organização a quem é atribuída mas a pessoa ou a organização que a enviou). Uma autoridade de saúde, uma fonte oficial, uma publicação especializada e com reputação reconhecida? Ou um autor anónimo ou desconhecido?
  • Verificar se os autores da notícia se identificam ou se se escondem atrás de nomes pomposos que não são mais do que uma forma de anonimato. Verificar se os autores assumem a responsabilidade pelas alegações que fazem ou se se protegem com disclaimers...
  • Verificar se a notícia ou opinião identifica ou fornece links para as fontes primárias de informação. Verificar esses links e confirmar se confirmam a notícia ou opinião;
  • Verificar se a mesma notícia é confirmada por fontes diferentes;
  • Verificar se a notícia ou opinião apela a sentimentos ou "estados emocionais", usa narrativas ou imagens sensacionais ou escandaosas;
  • Verificar se a notícia apela à compra de produtos ou serviços.
  • Não difundir ou partilhar "notícias" que não passem nos crivos anteriores. Seguir as recomendações da campanha VERIFICADO, das Nações Unidas. Se alguém partilha uma mensagem anti-vaxx numa rede social, não comentar! Isso só dará mais ressonância à mensagem com desinformação. Se for uma pessoa amiga, é preferível comentar em mensagem privada.

Cada um de nos pode ser um Eliot Ness para pôr fim à máfia anti-vaxx.


Carlos Campos
(Cartoon de Bruice MacKinnon)

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