30 Jan
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O governo do Reino Unido colocou em consulta pública, até ao dia 8 de março, um novo Bill of Rights. O propósito é rever o Human Rights Act de 1998, a transposição da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e recuperar a prevalência dos tribunais nacionais para interpretar as decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (Estrasburgo).

O novo documento "irá restaurar uma abordagem de senso comum em áreas vitais, como a possibilidade de o Reino Unido deportar criminosos estrangeiros, tais como traficantes de drogas e terroristas, que frequentemente tiram partido das leis sobre direitos humanos para evitar a deportação", afirmou Dominic Raab, secretário de estado (ministro) da justiça e vice-primeiro ministro, no comunicado oficial publicado no dia 14 de janeiro, que refere uma defesa frequente contra a deportação: o direito à vida familiar, reconhecido pelo artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. O ministro defendeu a reforma do regime dos direitos fundamentais num artigo publicado no jornal The Times aludindo ao caso de "um homem que foi condenado por agressão contra sua parceira. Não pagou a pensão de alimentos para o filho. Mas, ainda assim, reivindicou o direito à vida familiar para frustrar uma ordem de deportação. Esse é o tipo de caso que dá má fama aos direitos humanos – e mina a confiança do público". Segundo o ministro, as sociedades atuais estão a ser minadas por "uma 'cultura dos direitos' que desloca para segundo plano a responsabilidade pessoal e o interesse público".
O processo de preparação do novo Bill of Rights foi iniciado com consulta a organizações, seguida de consulta pública, obedecendo aos procedimentos de transparência habituais na democracia do Reino Unido. O anúncio da consulta, o texto do documento em consulta, e os vários pareceres e documentos preparatórios estão disponíveis na internet (clicar nas hiperligações).

O direito à vida familiar reconhecido pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem está longe de ser um direito absoluto passível de anular as leis nacionais e impedir uma deportação justificada. Basta conferir o texto da Convenção para constatar que a deportação pode prevalecer sobre o referido direito.

ARTIGO 8.°Direito ao respeito pela vida privada e familiar 

1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.
2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infrações penais, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros.

O ministro da justiça não se pode queixar dos tribunais do Reino Unido. O texto em consulta refere vários casos julgados no Reino Unido em que os arguidos alegaram a violação de outros direitos fundamentais, como a liberdade religiosa e a inviolabilidade da correspondência, entre outros. Apesar de os tribunais terem rejeitado as alegações, o ministro da justiça considera que o regime dos direitos deve ser revisto para evitar os custos incorridos rejeitar as alegações!

Apesar do título apelativo de 'a Modern Bill of Rights', a leitura da fundamentação que o acompanha revela o arsenal habitual de argumentos securitários que tendem a desvalorizar os direitos fundamentais e as garantias de defesa. A maior parte desses argumentos é comum na vulgata das organizações populistas. Ao assumir a tese securitária segundo a qual os direitos fundamentais e as garantias de defesa prejudicam o interesse púbico e a segurança dos cidadãos, o governo está a iniciar um caminho perigoso, uma regressão que mancha e magoa a merecida admiração pelo País que reconhecemos como um dos mais inovadores na história do Direito moderno, com os seus vários documentos precursores - a Magna Carta de 1215, o Bill of Rights de 1689, o Slave Trade Act de 1897, o Representation of the People Act de 1918. Nas décadas mais recentes, a contributo enriquecedor da doutrina e jurisprudência do Reino Unido fez com que o Direito Europeu pudesse beneficiar do melhor de suas tradições: a ango-saxónica e a romano-germânica. Se o brexit chegar aos direitos fundamentais, é como se o tunel fechasse e a Ilha se afastasse como a jangada de pedra de Saramago.


CARLOS CAMPOS

Foto: Assinatura da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Roma, 4 de novembro de 1950. [@Conselho da Europa]

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